sexta-feira, 28 de agosto de 2009

À antiga

Meu avô, o velho Olivo, era um cara à antiga.
Ele cumprimentava as pessoas.
Não. Nem todos os avôs o são, ou foram.
Agora mesmo sinto o cheiro da caldeira do prédio ao lado. O aquecimento deles é a lenha. À antiga também. Moro no prédio ao lado, mas usufruo o perfume da lenha queimada.
O vô conseguiu uma façanha: morreu na admiração quase unânime. Sei o que se fala sobre unanimidade, mas no caso dele, nada havia de desabonador.
O velho tinha uma característica que demorei a admirar: ele gostava, ou parecia gostar, das outras pessoas. Esse altruísmo se manifestava da forma mais pura e admirável. Através de bons dias e boas tardes. Sinceros, diga-se.
Todo mundo que vive, ou viveu numa cidade pequena sabe que encontrar inúmeros conhecidos cada vez que se sai para a rua é inevitável. Às vezes deve ser um saco, outras não. A sensação de familiaridade pode ser boa e nunca nos abandonar completamente. Acho que o vô conservou isso.
Convivia bastante com ele e posso dizer que nada havia nele de autoritário ou disciplinador. Minha vó cumpria esse papel – que, aliás, é mais feminino do que se supõe.
Meu pai era um bom homem, mas grave e muito preocupado com o papel de provedor da família. Quando finalmente relaxou, já era tarde. O velho Olivo, que nunca aprendeu a guiar, cruzava a cidade a pé, distribuindo seus bons dias e boas tardes. O dito familiar era que se ele passasse duas vezes na mesma rua, fazia amizade até com os cachorros no caminho.
Era magro. Desengonçado, sempre ostentou um bigode que apontava maniaticamente enquanto nos humilhava em qualquer jogo de cartas. E quando a humilhação não acontecia, não hesitava em roubar, mesmo que os adversários fossem crianças de 10 anos de idade. A vó surgia do nada para censurar: é isso que tu ensina pros teus netos?
Me ensinou a jogar bocha, nunca jogou futebol. Coisa de caras bem à antiga. Na praia eram os netos do Olivo e uma turma de sexagenários em torno das bochas e do balim. Vêm daí uma série de expressões que aprendi no italiano incompreensível dos ancestrais e um monte de piadas engraçadas – para rir à moda antiga. Quando uma bocha desviava num dos inúmeros minúsculos objetos que existem em qualquer areia de praia, nós e os vovôs dizíamos: pegou nom osso de grilo!
Prova de qualidade: a criançada estava sempre em volta dele.
Sua profunda sabedoria saída sabe-se lá de onde nunca o permitiu crescer.
Morreu criança. Nunca soube direito a idade dele, nunca quis saber.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Papeizinhos

As grandes, cinematográficas saudades que repousam nos recônditos de nossa memória são inspiradoras, mas as saudades contidas nos pequenos objetos e a sua persistência são perturbadoras.

Talvez por sempre nos pegar desprevenidos: um papel de bala reconstrói um universo inteiro.

Fala-se do poder das imagens e das palavras, mas essas pequenas coisas têm a força de uma máquina do tempo.

Na adolescência, enquanto voltávamos para Porto Alegre depois de um longo período de veraneio no litoral, me surpreendi com um pequeno pedaço de madeira nas mãos. Rastro de algum resto de algo que recolhi antes de sair pela última vez da praia.

A última vez.

Como isso parecia verdadeiro naqueles dias. Só revestia de mais importância o pedaço de madeira.

Havia outros motivos, claro. A adolescência é o período das primeiras paixões e havia, claro, uma pessoa, que, claro também, nunca ficou sabendo de nada.

Segurava o pauzinho e o nó na garganta.

Fiquei obcecado por essas pequenas relíquias e os átomos de significado que elas carregam. Sei que não sou o único – originalidade nunca foi o meu forte – e procuro não coletar restos humanos, como cabelos, unhas e qualquer coisa perecível (argh!).

Cheguei a incorporar saudades alheias: um compacto – daqueles pretos de vinil – do Lennon, que meu irmão havia pego emprestado de alguma garota e era perfumado (na época essas razões me escapavam). Nunca mais ouvi #9 Dream do mesmo jeito. O perfume qualificou a – já ótima – música. A garota, só existiu na minha imaginação, nunca a vi.

Nessas horas penso em moléculas, células, nanocoisas que permanecem naqueles objetos. Mesmo um recibo de cartão contém a memória do momento, uma partícula da poeira daquele ar.

Mas apesar disso, não guardo esses objetos.

Eles me colecionam.

domingo, 26 de julho de 2009

P S G

O que faz uma mulher gostar de um homem ainda é, para mim, insondável, mas o que um homem ama numa mulher é, essencialmente, o sorriso que ela dá quando ele conta uma piada sem graça.

As piadas sem graça – ou PSG – são, de longe, o que há de mais revelador numa relação.

Declarações românticas são ok, mas convenhamos, estão desgastadas e muitas vezes carecem de sinceridade e imaginação, além de ter muitas pretensões.
As PSG têm só uma: aquele sorriso.

Os homens puxam cadeiras e pagam contas nos restaurantes, ouvem, ou fingem ouvir com atenção tudo o que elas dizem – às vezes mais embevecidos com o jeito delas dizerem do que com o conteúdo –, dão flores – alguém ainda faz isso? –, lembram de todas as datas, inclusive do aniversário da sogra – aí dão flores para ela! – puxam o saco do sogro, não falam de futebol a toda hora, enfim, vivem fazendo coisas para tentar agradá-las. As mulheres só precisam se preocupar com isso: o sorriso – sempre sincero – das PSG.

Uma série de PSG é sempre uma tentativa de início ou resgate de uma relação. Se ela sorri, uma porta está aberta. Se não, corra.

O sorriso sincero de uma PSG é inescapável. É impossível simulá-lo, já que uma PSG só pode ser identificada como tal se houver amor, ou pelo menos, algo parecido. Senão é como dizer: Olha! Um carro vermelho!

Percebe?

Existem, é claro, as piadas engraçadas, ou PE. Mas as mulheres não riem das piadas, riem dos homens que as contam. O que não é necessariamente ruim. Mas só as PSG são reveladoras.

Aí está um termômetro: uma mulher, por sua vez, pode saber muito a respeito de um homem pela qualidade de suas PSG. Um bom contador de PSG tem plena consciência de sua falta de graça. De outra forma, seria um chato banal. Um bom PSGista busca, obstinadamente, aquele sorriso. Quando o conquista, articula outra arremetida, incansável. Desenvolve o vício, voluntário, no vislumbre dos dentes da amada.

Quando um homem cerca uma mulher de PSGs, na verdade está tentando descobrir o que só quinze ou vinte anos de relação ou um exame completo de DNA poderiam – com margem de erro maior – evidenciar.

As PSG são, ou deveriam ser, a última coisa que submerge numa relação. Numa boa relação.

Às vezes, não desaparecem nunca.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Vítimas

Quem se apaixona e – consequentemente – separa com frequência, torna-se, obrigatoriamente, um pesquisador musical.

Músicas marcam relacionamentos. Grudam nas pessoas. Amarram-se nos momentos. Articulam memórias.

É independente de nossa vontade. Lá estamos nós, com AQUELA pessoa olhando AQUELA nuvem e então toca AQUELA música: a nuvem não é mais a nuvem, a árvore não é mais a árvore, a estrada não é mais só um caminho.

O fim de um relacionamento derruba – às vezes – meio iPod dos grandes. Vão também livros e filmes. Mas as músicas são, com frequência, as vítimas mais numerosas.

Artistas têm toda a sua discografia descartada. São comprometidos, inclusive, os próximos lançamentos. A foto deles nas revistas é rapidamente folheada. A aparição na TV cortada por um golpe rápido de controle remoto.

Extermínios do gênero também acontecem em outras esferas da paixão: sabe aquelas músicas especialmente compostas para aquela Copa em que fomos vergonhosamente desclassificados? Não lembra? Nem eu.

Viu?

Quem se apaixona e separa com frequência pode ficar sem trilha. Fica condenado a um duplo silêncio, de voz e de música. Se obriga, assim, ao garimpo: novos lançamentos, clássicos obscuros. Busca, com diligência, material nos nichos mais recônditos. Começa a frequentar debuts de artistas independentes, percorre a noite, insaciável, atrás de novas sonoridades.

Adiciona à paixão um outro vício.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Pelo sim

Minto, como a maioria dos caras que conheço, para evitar fazer a barba.

Argumento que tenho a pele sensível – em algum lugar tinha que haver alguma sensibilidade –, que fico com o pescoço vermelho, que sempre arranjo algum ferimento. Quase me corto propositalmente para provar minha tese. Sangraria por isso.

A razão masculina é outra para a aparência semipitecantrópica de homem curtido nas privações da vida: leite de iaque, carne de urso e essas coisas.

Tem uma imagem que sempre me vem quando estou meio barbudo: meu pai insistia em beijar e esfregar o rosto no de minha mãe quando estava a ponto de lixa. Ela xingava, tentava se desvencilhar e batia nele com o que estivesse à mão, mal escondendo o sorriso. Ele corria para o banheiro, se barbeava e voltava, todo romântico: vem, aproveita agora...

Não me refiro àquelas barbas coletoras de sopa à lá Los Hermanos, mas às frutos de um suposto desajeito com as coisas da civilização.

A barba deixa lembranças.

Um homem mal barbeado pode machucar, é claro, tenho amigos de barba cerrada e costumo beijar os meus amigos. Sei que dói. mas no fundo, tudo o que um mal barbeado quer é, pitecantropicamente, assinar a pele amada.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Comecei no twitter

Comecei no twitter.

De início, uma dificuldade: 140 f*ing caracteres. Tenho que exercitar isso. Estou pensando em fazer posts em capítulos enquanto não arranjo uma forma resumida de mim mesmo.


Outra dificuldade: responder a pergunta “o que você está fazendo?”
Sei que isso não é absolutamente necessário, mas acabei descobrindo, por causa disso, que quase nunca estou fazendo uma coisa e PENSANDO na mesma coisa que estou fazendo. Isso cria uma dificuldade extra. Na verdade, isso explica um bocado das dificuldades que venho encontrando na vida. Ainda bem que não lido com máquinas pesadas como aquelas bolas de demolição, só toco guitarra. O pessoal da banda às vezes me olha meio torto quando, numa das minhas viagens, erro um acorde ou termino a música antes deles. Não compreendem o cérebro de um gênio. Aliás, estou pensando em doar o meu para a ciência. Eles já toparam, disseram que estão precisando mesmo de peso para papel.

O problema é que para escrever é preciso pensar e, francamente, não consigo pensar em 140 caracteres ainda. Nada do que me orgulhar, mas não vou me deixar seduzir pela ideia de que minhas vírgulas têm sabor de framboesa.

Além disso, quando alguém ou uma máquina nos pergunta o que estamos fazendo, somos colocados diante da constatação de que não estamos fazendo nada que mereça um post de 140 caracteres na maior parte do tempo.

Fico pensando em reduzir para uma única palavra, talvez o jogo ficasse mais interessante. Agora ela seria: triste.

Aliás, o endereço é carlosnenhum. Tentei achar um mais interessante, juro, mas chegaram antes de mim.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

A gol!

A gol, a gente dizia quando ia chutar contra o gol do adversário no futebol de botão. Não sei se ainda é assim, mas joguei muito futebol de botão na infância e adolescência e isso deve ter me condicionado de alguma forma.
É fácil me pegar desprevenido: se você não disser “a gol” me acerta bem no meio, sem esforço. Não vou me esquivar. Sempre tive reflexos lentos e o tempo acentuou isso.

Aconteceu num dia em que assistia a um desses filmes românticos, não me lembro extatamente qual: caí na armadilha. Uma cena despudoradamente melosa e me surpreendi com uma sensação sólida na garganta e os olhos encharcados. Meu primeiro pensamento foi: que p*rra é essa? (ainda havia um pouco de testosterona em algum lugar no meu corpo).

Mas foi assim, como virar a página de um livro, automático. Veio com os filhos, acho, ou acontece com todos nós. Ainda vou me lembrar de perguntar.

Mas, que inferno, foi bom.

Não fiquei sem critério, mas me emociono – a palavra é essa, não? – assistindo Bob Esponja. Só depende das circunstâncias.

Já havia desistido, com relutância, de ser James Bond, mas esse foi o atestado final da minha falta de vocação para salvar o mundo. Aliás, mais pessoas como eu e o 007 seria uma figura desnecessária, bastariam exércitos de pelúcias cor de rosa.

Não me esquivo mais. Tem muitas coisas que acontecem na minha vida que vivem me pegando desprevenido e me deixam arriado. EU! Que fui um leitor e praticante do bukowskyanismo, bêbado por olhos, bocas, imagens e algumas palavras certas na hora certa em certos lugares e com a trilha sonora certa.

Estou exagerando – já disse isso em outro texto abaixo, eu sei, mas continuo exagerando e aviso: NÃO VOU PARAR! Depois eu me desculpo, okay?

quinta-feira, 18 de junho de 2009

On Tour

Dez dias de viagem a trabalho tiram alegremente o equilíbrio de qualquer um. O difícil é voltar atrás.

Não é segredo para muitos que faço faculdade. O que poucos sabem, mas calculariam com facilidade, é que estou na época de entrega de trabalhos.
Normalmente já há aí elementos – viagem+datas de entrega, lembra? – para se constatar o caminho, sem limite de velocidade, para o inferno. Acontece que acho estupidamente divertido escrever para esse blog. Mais do que tudo, pelo feedback que recebo dos amigos que o leem, mas o tempo para ele anda escasso. Ontem alguém me falou algo que me soou como um elogio – me corrijam se estiver errado: gosto do seu blog, mas gosto MESMO dos comentários que as pessoas deixam. Acho muito louco.

Louco?

O fato é que está difícil dormir. E só duas coisas me tiram o sono: precisar fazer algo sem ter a menor ideia de como começar e precisar fazer algo e ter a ideia precisa de como fazer e ficar com a sensação de que, se dormir, a coisa toda vai acabar no lugar da primeira coisa que me tira o sono.

Mas jurei para mim mesmo – com os dedos cruzados, por precaução – não abandonar o “Trocas” jamais. Só estou dando algumas pausas mais acentuadas entre os textos. Esse aqui, por exemplo, é um texto de pausa. Resolvi escrever porque não conseguia dormir, de novo. O único intuito dele é manter vocês, que provavelmente não têm problema para dormir – nem todos, né? – acordados, ou pelo menos com um rabo de olho nesta direção.

Fico muito tempo pensando em assuntos que mereceriam esse espaço. Assuntos relevantes de verdade, que valeriam o tempo de uma leitura. Olha, eu sou um cara formal, daqueles que escovam os dentes antes de falar no telefone, e tenho que tomar cuidado com isso. Não dá, simplesmente não dá para eu ficar pensando demais antes de escrever. As palavras vão ficando pesadas demais. Alguém também comentou sobre os meus textos que parece que eu escrevo com um dicionário aberto ao lado. Isso não me soou como um elogio, porque, às vezes, é verdade.

Abro o dicionário a esmo e procuro a palavra mais inusitada que encontrar e a uso. Pronto: confessei! Me sinto melhor agora. Podem parar de me esbofetear.
Consegui acordar vocês?

Hem?








Hello?

sábado, 23 de maio de 2009

Estações

Tenho um amigo que me disse algo que me fez mudar um jeito de pensar.

Quem tem ou já teve um jeito de pensar deve saber como é difícil mudar.

Conversávamos sobre um inverno tardio ou sobre um verão apressado, isso não lembro, mas o que ele falou foi: não tenho preferência de estação, gosto de verões muito quentes e invernos congelantes. Comprei na hora.

Desde então venho desenvolvendo intolerância com meias estações. As radicalidades me seduzem mais.

Meias estações não são estações. Os trens param nas estações, só param no meio por um mau motivo.

Hoje quase todos os esforços parecem voltados a evitar os contrastes, os extremos. Fogem de pontos de vista radicais por medo de ficar sozinhos. Alimentam um desejo doentio pelo comum, pelo razoável. Arredondam os cantos da vida.

Desisti das concessões: taco pimenta na comida. Cachaça, tomo de gole. Jogo alegremente a água do banho fora com o bebê junto. Roupas são pretas ou brancas, cinza é um desbotamento do caráter, ou pior, uma mancha. Nem vou falar dos beges. A própria palavra fala por si mesma.

Busco o desequilíbrio. É dali que vem o movimento. É o desconforto que me move, na direção dos próximos desconfortos.

Declarei guerra sincera e devotada ao senso comum. Uma implicância impertinente contra o mais ou menos. Compro brigas, vendo contradições e empresto dúvidas.

Não sobrará muro!

terça-feira, 12 de maio de 2009

Exercícios

Eu tô tentando. Eu tô tentando...
Essa turma maravilhosa que dispende um pouco do seu precioso tempo de quando em quando para ler os meus textos e, melhor, comentar,(eu leio todos, todinhos, viu?) deve ter notado uma diferença nos temas e mais ainda, na forma. Aviso: não estou esquizofrênico. Ainda.
Como quase tudo na vida tem explicação, – fora o que não se explica – isso tem: estou fazendo uma oficina de texto com um maluco (em vários sentidos) chamado Carpinejar e resolvi usar esse espaço prá lá de democrático para me exercitar. Boto então uma malha – conceitual – bem apertada e uma bandana na cabeça para estancar o suor e vou tentando.
Não abandono nenhuma de minhas pretensões – e bota pretensão nisso! – e muito menos a maior de todas: ser um cara disciplinado e manter esse blog razoavelmente em dia. Como um bom pai, sempre que coloco um texto novo, abro e reabro o blog para ver o filho novo. Com o tempo, como todo o pai, começo a enxergar os seus defeitos. Mais algum tempo – ainda como todo o pai – SÓ CONSIGO ENXERGAR OS DEFEITOS. Mas tudo bem, aprender a amar os defeitos daqueles que amamos é que é a coisa. Embora ainda esteja aprendendo, da forma mais dura, que é um pouco necessário nos desligarmos daquilo que produzimos – de novo, mais ou menos como acontece com os filhos – para produzir coisas novas e, quiçá, melhores (isso é diferente do que acontece com os filhos).
Só entrei para dizer isso: obrigado. Tem sido mais que legal por causa de vocês, viu?

segunda-feira, 4 de maio de 2009

100%

Ela coloca o pé na faixa de segurança. Eu paro. Ela agradece com um sorriso. Alguém buzina no carro de trás. Eu olho, na expectativa de algum conhecido. Acho que não é. É um Chevette. Verde. Meu pai teve um Chevette verde igual àquele. Cada vez que ele trocava de carro era sagrado: nos pegava em casa para dar uma volta no carro novo, uma espécie de ritual familiar de posse, e com o Chevette verde não foi diferente. Mas aquele Chevette é diferente, tem os vidros pretos: impossível enxergar o motorista. Um braço se agita pela janela, hostil. É um homem. Ou uma mulher peluda. A argumentação do braço não deixa dúvidas: ele não está feliz com minha parada na faixa de segurança. Saímos juntos de nosso impasse e torno a parar, agora no sinal vermelho. Ele pára atrás de mim, de novo. Não buzina, mas o braço ainda mostra claramente a contrariedade. O sinal abre, ele acelera bem além do necessário para fazer um Chevette verde se mover. Andamos uns duzentos metros e paramos no sinal seguinte. Ele está em outra pista, mas não ao meu lado. Percebo que ele me enxerga através do meu espelho porque quando olho, ele gesticula. Começo a fingir não olhar, movo apenas os olhos, e não a cabeça, na direção do braço. Ele tem boa visão, não consigo pegá-lo desprevenido, por mais rápido que olhe ele reage. Esse é o problema com os espelhos: não entendem a nossa curiosidade. Expõem e revelam com a mesma intensidade. Insensíveis objetos inanimados! No próximo sinal ele consegue, depois de outra acelerada esfumaçada, parar ao meu lado. Ele se vira para mim e agora o braço pungente ganha um rosto, não muito bonito nem muito feliz, mas tão pungente quanto o braço. Antes que comece a gritar, subo o meu vidro: não levei fé na qualidade do xingamento, resolvo guardar a imagem do braço. Isso parece tê-lo enfurecido mais: agora os dois braços se movem numa coreografia complexa. Fico curioso e começo a baixar o vidro. O sinal abre e o Chevette verde se vai. O braço faz um último gesto, como se jogasse algo para trás. Minha existência, provavelmente. Quando a fumaça se dissipa eu vejo o adesivo, imenso, no vidro preto traseiro do Chevette verde: 100% JESUS.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

s.h.

super heróis não riem
caminho curvado: último dinossauro na terra. pior, com a consciência da extinção iminente. será que somos tão diferentes? gosto de imaginar que sim. olho o mundo através de um tubo inclinado para baixo: sapatos, tênis, sandálias, pontas de cigarro, chiclés pretos esmagados, uma pedra, duas, asfalto, cocô de cachorro. é tudo o que eu vejo. é o mais próximo da invulnerabilidade. tudo assume uma cor estranha, mas nova. eu atá ia rir de algum revés, se tivesse energia, porque tudo fica um pouco risível. quando tudo fica sem sentido vem a visão de raios x. só vejo o osso. não. vejo o que eu penso que é o osso. tem um prazer estranho nisso, na invisibilidade. nem os detectores eletrônicos de movimento me captam. não existe mais o medo, nenhum medo. de nada. revólver, faca, estilete, palavras, altura, fogo, afogamento, ser enterrado vivo, queimado numa pilha de pneus. tudo muito engraçado. se tivesse energia riria. mas não. super heróis não riem.

sábado, 11 de abril de 2009

Sonos

Durmo melhor entre o som das conversas.

Existe uma espécie de abrigo cálido que se conforma em torno das vozes de familiares e conhecidos. Tombar entre esses sons produz o melhor dos sonos.

Aliás, só me lembro de um melhor: o sono do carro quando somos pequenos, e a sensação de ser carregado, imóvel – fingindo-se desmaiado – até a cama. Até as funções de higiene como escovar os dentes, lavar o rosto e as mãos, tudo dispensável. Em primeiro lugar, o repouso do corpo. O sono da alma.

O súbito silêncio nas conversas é que me desperta. Os gritos, as interjeições e discordâncias não. Tudo conspira para – como aquele cobertor displicentemente jogado sobre os meus joelhos num dia mais frio – me envolver no desejo de não estar em nenhum outro lugar.
Às vezes estava na rede, na casa da praia. Uma brisa leve esfriava o ar que entrava pelo meu nariz, misturando cheiro de maresia, churrasco, caipirinha, café e sobremesa.

Até hoje fico em dúvida se dormia ou fingia. Alguns momentos são tão perfeitos que dá vontade de parar de respirar para ver se se eternizam. Ainda bem que não: sempre vem alguém e gentilmente nos toca o ombro e diz: café com bolo?

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Ítens de gênero

Carros são brinquedos masculinos. São nossa forma de expressão mais acabada, quando não a única.

Os fabricantes de veículos, sensíveis aos novos tempos, inventam uma série de ítens – é o nome técnico – para seduzir as mulheres: espelhos iluminados, porta-batom e sei lá o que mais. Alguns funcionam, mas eles parecem não ter percebido que o mais feminino de todos os ítens já está no carro. Aliás, sempre esteve, desde que o primeiro foi inventado: a buzina.

Basta olhar. Você ouve uma buzina no meio do trânsito e batata: é mulher.

Sei, estou generalizando um pouco, mas só um pouco, porque, quer dizer, homens e mulheres têm sons diferentes de buzina.
A buzinada masculina é uma palavra, melhor, um palavrão. É lacônica, abusada. A feminina é um texto, um discurso, uma história de vida.
O som da buzina masculina urra: SUMAM! A das mulheres conjectura: saiam da minha frente, tenho que buscar as crianças na escola, passar no mercado, preparar a janta, esperar o maridão ou: estou atrasada para aquela aula daquele professor gatinho e, se chegar tarde, não vou conseguir sentar perto das gurias e vou ter que falar do meu fim-de-semana maravilhoso em voz alta e tem detalhes que são meio…indiscretos e o professor gatinho pode ficar incomodado, aliás, ele fica ainda mais gatinho quando está incomodado.

Tenho infinitos motivos para invejar as mulheres – elas, de nós, só têm um: nossa capacidade de urinar em pé – mas quando vejo uma dirigindo, falando ao celular – sei, sei que é proibido, but – e buzinando para um motoboy imprudente que que se materializou no caminho, fico com sentimentos controversos: simpatia que crava um sorriso idiota na minha cara e inveja da forma como elas se ancoram na realidade através de todos os sentidos e poros.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Divagarim

Recomendações:
Blog da amiga Clarisse, gaúcha, atualmente radicada em Fortaleza.
Deem uma olhada, duvido que alguém não goste.

http://divagarim.zip.net/

O Garimpeiro

Toda a mesa dos amigos no bar se curvava na direção do corpo perfeito que adentrava. Ele nem percebia. Seu foco era uma menina de óculos na mesa do canto. Ela conversava com os amigos e o hipnotizava: boca, olhos, cabelo, voz, o jeito delicado que comia o sanduiche aberto: três mordidas. A fatia de tomate às vezes pendia do queixo. É preciso, no mínimo, elegância para lidar com isso. Ela tinha.
Não era feia, de modo algum. Só não era óbvia, e as obviedades lhe cansavam.

Gostava de garimpar mulheres. Não era um catador.

Calças muito justas, decotes pronunciados, barrigas à mostra, umbigos com piercings, cabelos tingidos e alisados, tudo isso soava como uma série de lugares-comuns. O discurso era pobre.
Nada tinha a ver também com beleza interior. Outro discurso pobre. Tinha a ver com beleza mesmo, mas uma beleza que pedisse uma construção compartilhada, um diálogo, não o monólogo das gostosonas.

Tinha desenvolvido o olhar preciso dos apreciadores das artes difíceis.

Como quase todo mundo, havia entrado e saído de diversos relacionamentos. A sucessão de experiências aguçou mais esse seu olhar.
Uma vez namorou uma levemente estrábica – a vesguinha, diziam os amigos. Costumava dizer que aquele jeito de olhar funcionava como um ímã: vivia se postando no lugar onde os olhos apontavam: a centímetros do rosto dela, e os olhos ainda pareciam pedir mais. Um vício.
Outra, vitimada pela praticidade, estava sempre de rabo-de-cavalo. E ainda por cima usava óculos!
Outra ainda era obrigada a usar um uniforme que nada tinha de sensual. Teve que resistir para não apelar que ela o usasse sempre, mesmo nos dias de folga.

Não conseguia, por outro lado, disfarçar o desapontamento quando seus afetos, movidos pelo desejo de encarnar outros personagens, se produziam. Muitas vezes até para impressioná-lo: estou bonita? Diziam. Ele suspirava, contrariado: linda.

Era quase sempre o começo do fim.

sábado, 14 de março de 2009

vinil e cd

Recebi do Thedy uma entrevista de um jornalista a quem respeito muito na revista Bravo on line, o Arthur Dapieve. Leiam em: http://bravonline.abril.com.br/conteudo/musica/qual-futuro-musica-424977.shtml
Concordo com tudo o que ele falou, mas tenho dúvidas em relação a uma questão em particular: a sobrevivência do CD como suporte, mesmo resguardado num nicho específico.

Embora seja indiscutível a qualidade do produto musical associada aos suportes CD e DVD em relação aos arquivos MP3, me parece que parte da mística associada ao vinil - que teria viabilizado aos “apreciadores” do formato a criação de um nicho específico já meio que consolidado no mercado de música – está mais associada ao ritual necessário para a audição dos discos.

Naqueles idos escutar música requeria a atenção dedicada e presencial. Era necessário estar no mesmo ambiente, ou bastante próximo, para conseguir ouvir o que estava tocando, já que não havia a possibilidade de portabilidade enquanto da execução da música (não tente fazer isso com o tocadiscos do seu pai, please). Além disso, precisávamos trocar o lado do disco ao final da última faixa. Ficávamos, com frequência, enxugando o conteúdo dos álbuns, o que conferia a parte gráfica destes um valor especial e, no limite, acabava por ensejar um tipo de relação com a música que em muito – não dá para negar – se perdeu.

Uma prova dessa relação é que existe um mercado de apreciadores de vinil, mas o cassete – a não ser que esteja mal informado – não goza de toda essa regalia. E tinha portabilidade via walkmans.

Uma das principais características associadas à digitalização das coisas é a perda da relação direta com o objeto que lhe deu origem. Estabelece-se uma relação mediada por códigos binários. Aquela nota específica da guitarra que produzia um sulco mais profundo na superfície do vinil – e dava, sim para discriminar as músicas “lentas” das “rápidas” a partir do vislumbre dessa superfície – produz, num arquivo digital uma sequência de zeros e uns em nada diferente daquelas que o computador usa normalmente para identificar um tipo de fonte ou se se trata de uma letra maiúscula ou minúscula ou se é aquela foto que você tirou da sua priminha torturando o seu cãozinho.

Difícil imaginar que possa surgir muita intimidade nessa relação, né?

Tudo bem, poderíamos estar falando de conteúdo, mas não é o caso aqui. O papo é sobre suportes e a capacidade deles de firmar algum tipo de conjunção afetiva com o ouvinte.

A portabilidade se consolidou como o principal valor no momento: poucos trocariam armazenar 10 mil músicas – embora não imagine quem tem a necessidade de carregar tudo isso – por umas mil com uma definição superior – o que já é uma quantidade monstruosa. E ainda tem muita coisa que interfere na qualidade da audição: é só dar uma olhada naqueles fones amarelados (eca!) que você usa todo o dia para ir para a aula ouvindo o seu tocador de MP3. Qualidade impõe isso, investimento. De dinheiro, espaço e tempo. Não é preciso trazer a opinião de nenhum especialista para sustentar que esses parecem ser artigos raros e um luxo para a maioria de nós.

É uma pena, mas talvez o prazer de ouvir uma música com o rigor e dedicação que ela merece – e algumas merecem, e não são poucas - seja mais uma das vítimas dessa nossa noção moderna de urgência que impregna o nosso cotidiano, que nos faz acreditar que é perda de tempo deixar um tempo para ler, comer decentemente, pensar, amar e conversar sobre essas coisas.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Etiqueta Urbana

Quando viajo para o centro do país não consigo evitar de carregar comigo uma sensação de insegurança em muito potencializada pelos meios de comunicação. Sei, no fundo, que é um pouco exagerada, pois não é muito diferente da que vivencio quase todo dia aqui em Porto Alegre.

Há algum tempo me chamou a atenção a argumentação de um conhecido, carioca, sobre um episódio envolvendo um turista – mais um – assaltado e morto. Não me lembro exatamente do caso, mas episódios similares aconteceram e continuam acontecendo todos os dias pela cidade, o que infelizmente torna esse caso uma ocorrência cotidiana que talvez dispense o conhecimento dos detalhes.
Ele dizia que os turistas se colocam em condição de risco. Traduzindo: carregavam objetos de valor à vista de qualquer um, caminhavam sem a devida atenção pelas ruas e frequentavam os lugares errados nos horários inadequados. Viviam, assim, se expondo a riscos, comportando-se como tolos (manés é a palavra), e destino de mané todo mundo sabe qual é, não é?
Bom, os malandros (contrário de manés) não cometem esses erros.

Pouco tempo depois, uma música dos Paralamas do Sucesso, Calibre, pergunta:
Por que caminhos você vai e volta
Aonde você nunca vai
Em que esquinas você nunca para
A que horas você nunca sai
Há quanto tempo você sente medo
Quantos amigos você já perdeu
Entrincheirado, vivendo em segredo
E ainda diz que não é problema seu

Após mais uma babárie ocorrida na cidade, organiza-se uma passeata pela paz. Pessoas com camisetas brancas carregam bandeiras brancas e cartazes com a foto de mais um inocente chacinado.
Numa declaração, o jornalista Pedro Bial – ele próprio vítima de um episódio de violência – afirma que não vê sentido nesse tipo de movimento, não se trata de pedir paz, mas encarar o fato de que o Rio vive uma situação de guerra e agir como tal.

Não é preciso muito para concluir que a violência já nos vitimou a todos, de muitas formas.
Assumimos que existem lugares em que “não podemos” ou “não devemos” ir com naturalidade. Que existem objetos que devemos esconder aos olhos do público.
Fiquei surpreso em constatar também que um grande número de pessoas próximas pensam assim.

A violência mapeou as metrópoles. Designou os horários e os comportamentos “adequados”, inaugurou uma nova etiqueta: como se comportar, o que vestir, aonde ir e como ir para não ser assaltado ou assassinado.
Vamos, aos poucos, incorporando essa nova etiqueta. Saudamos os antenados e mal nos compadecemos dos infelizes manés que, ignorando os seus ditames, se “dão mal” pelas ruas da cidade.

A culpa acaba sendo deles.

Paradoxalmente, gostamos de mostrar nossa indignação a cada novo caso de violência. Culpamos nossos governantes, mas será que, dentro de nós, essa batalha já não foi perdida?
Não poderia, claro, defender que nos expuséssemos irracionalmente. Muito diferente é assumir como naturais essas restrições. Nossas cidades são desenhadas pelo limite das grades dos prédios. Entrincheiramo-nos em condomínios murados que simulam internamente nosso ideal de cidade sem muros. Compramos em shoppings, devidamente isolados da rua.

Incorporamos os muros.

Difícil dizer os reflexos disso no nosso cotidiano futuro.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Filmes

Os filmes, os livros e as músicas estão entre as formas mais disseminadas de propagação de ideias e cultura. Nem sempre são boas ideias e nem sempre se pode chamar de cultura o que eles nos trazem, mas algumas vezes eles nos tocam de uma forma que nos faz imaginar como seria a vida sem nossa indústria cultural.
Frequentemente eles parecem traduzir nossa existência e nos fornecem compreensões que de outra forma nos escapariam.
Recentemente assisti a Once (apenas uma vez) e comentei com um amigo a respeito. Ele também gostou bastante, mas disse: triste ele, não?
Seu comentário me soou um pouco estranho porque pareceu uma percepção inescapável em relação ao filme, contudo, não fiquei com essa sensação, ou pelo menos, não foi a minha sensação preponderante a respeito do filme.
Para quem não viu, um resumo, que em nada estraga o prazer de assistir, que se encontra bastante vinculado a sua premiada trilha sonora. Um músico de rua, irlandês, encontra uma imigrante, pianista, e com ela desenvolve uma colaboração musical associada a um clima de romance, nunca consumado.
A relação de ambos atinge uma grande intensidade, embora, como disse antes, nunca se consuma.
Acho que enxerguei a situação ao contrário: a força dos sentimentos envolvidos na relação deles e a possibilidade de vivenciar essas sensações são um enorme privilégio. Talvez nisso resida a parte triste do filme. Será que não desejaríamos estar no lugar deles, mesmo sabendo que o desfecho não seria necessariamente um happy end?
Outro filme é As Pontes de Madison.
Da mesma forma que as grandes paixões, todos os relacionamentos, mesmo os que já escaparam da fase idealizatória são os tijolos com que construimos o que somos. Podemos enxergá-los pela ótica daquilo que nos privaram, ou por aquilo que trouxeram, e trazem, de vida para a nossa vida.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Marrons, verdes, cinzas e pretos.

Não era a fama. Definitivamente não era o dinheiro. O apreço de algumas pessoas e a música ainda eram importantes, mas um dia ele percebeu, quase como uma revelação: era a estrada.
Uma vez contou sobre essa descoberta a alguém. Ele então lhe perguntou: porque você não se torna caminhoneiro ou algo parecido? Não, pensou, transformar isso num modo de ganhar a vida? Nem pensar. Pode matar o encantamento.

Surgiu do nada.

Tinha acordado de madrugada e o ônibus inteiro ainda dormia. Colocou os fones e a música certa. Ele olhou para o céu e então aconteceu. Nada de excepcional. Nenhum brilho no meio das nuvens. Só uma sensação. A sensação de algo maior que ele. Nada sagrado, nem perto disso. Não acreditava nessas coisas.
Foi uma ligação difícil de descrever. Já havia ouvido falar excessivamente de sensações da paz e liberdade, mas se recusava a reduzir essa intensidade a esses lugares comuns.
Era sempre difícil sair. Deixar para trás pessoas de quem gostava e que sentiam falta dele. A estrada, no entanto, era necessária.

Aprendeu a gostar dos dias frios. Os céus eram bonitos, tinham tons rosados e alaranjados. Com o tempo aprendeu a admirar também o azul uniforme dos céus de verão. A luminosidade agressiva dos dias.

A sucessão de verdes e marrons que se tornavam cinzas e pretos ao escurecer.
Gostava da velocidade da estrada. O olhar tangenciava cada árvore, planície, pedras, água. As pessoas no caminho não pareciam ter uma existência concreta. Eram fantasmas na paisagem.

Nada depreciativo nisso.

Também gostava de se imaginar assim, um fantasma. Um ser com uma estranha ligação com aqueles verdes, marrons, cinzas, pretos. Era assim que se imaginava na percepção dos transeuntes. Essa sensação de uma existência fugaz, fugidia, o fascinava. Isso, contudo, não diminuia a conexåo com os – outros - fantasmas, pelo contrário, parecia criar uma espécie de cumplicidade fundada em olhares e gestos.

Enfim, silêncios eloquentes.

Havia as partidas e, lógico, os destinos, e nestes também conheceu pessoas que valia a pena conhecer, que também deixavam saudades. Poucas, nesse longo tempo. Mas havia. Elas também povoavam de imagens os momentos de contemplação.

Mas a sua fascinação era o trajeto. A linha que liga os dois pontos.

Como quase todo mundo, havia construido um sonho em que harmonizava o seu desejo de autonomia e a humana necessidade de relacionamento com as outras pessoas. Não percebeu, no entanto, que a estrada havia construido uma harmonia baseada em ausências, onde as relações, as pessoas e a própria autonomia eram idealizadas. Um mundo paralelo. Quase perfeito.

Havia vivido muito tempo sozinho. Elaborou mecanismos para administrar sua dificuldade nos relacionamentos. Isso foi na adolescência, mas de alguma forma esses mecanismos voltavam a funcionar. Um campo de força se acionava automaticamente, independente da sua vontade.

Impossível negar a sensação de conforto que isso trazia. A droga nas mãos do viciado.

A estrada representava essa noção de perfeição e conforto. O símbolo da transitoriedade, uma metáfora da vida, mas também uma fuga.

Uma fuga de quê?

Nem ele sabia exatamente.

Sabia que havia uma existência real, concreta, e uma ideia de existência.
Sabia que existia uma origem e um destino e que a estrada, de formas imprecisas, com suas cores e imagens mutantes, escrevia a sua história.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Quem tem filhos tem dessas perguntas.

Em meio às comemorações dos duzentos anos do nascimento de Darwin, as publicações e programas que têm como tema a teoria da evolução proliferam. Uma das abordagens mais constantes diz respeito ao fato de muitas instituições de ensino – religiosas – ainda ministrarem o criacionismo, que diz que todas as criaturas vivas são obra de Deus, ao invés do evolucionismo darwiniano como explicação para a vida e a diversidade dessa no planeta.

Meu filho tem cerca de dez anos e, como quase toda a criança nessa faixa etária, passou pela fase “dinossauro” (thank you, Spielberg). Tudo o que dizia respeito a esses animais o fascinava. Eu o encorajava inclusive a assistir programas sobre escavações e aos poucos ele foi entendendo mais sobre o assunto, assim como eu, que ia de carona na história. Isso o ajudou a formar uma opinião acerca de como surgiu e se desenvolveu a vida na terra.

Estava, então, lendo sobre a polêmica (!) criacionismo versus evolucionismo e resolvi consultá-lo a respeito (ele estuda num colégio católico). Quando comentei com ele que a crença criacionista defende que o universo e todas as suas criaturas existem há cerca de seis mil anos ele começou a rir. Imaginou que eu estivesse contando uma piada.

Mas um outro dia ele me fez uma daquelas perguntas que, a medida que tentamos elaborar uma resposta, vamos ficando surpresos com a nossa própria argumentação, quase como se estivéssemos ouvindo outra pessoa falar, percebendo claramente que estamos caindo em nossa própria armadilha. E eu sempre falo muito mais do que o necessário.

A pergunta, mais uma conjectura, era de que nós, os seres humanos, somos superiores às outras criaturas (uma crença do criacionismo, que acredita que somos à semelhança de Deus), já que os traços de nossa civilização podem ser percebidos facilmente, assim como a nossa capacidade de subjugar quaisquer outras espécies pela força, se necessário.

Comecei minha argumentação dizendo a ele que talvez nunca os seres humanos tivessem feito o que fizeram para ser superiores a nenhuma outra espécie, mas para ser mais bem sucedidos no jogo evolutivo, que envolve adaptação ao ambiente, o que resultou em nosso desenvolvimento relacionado à saúde, conforto e qualidade de vida.
No fundo, é a mesma razão que leva o João-de-barro a fazer o seu ninho – de barro – com a porta estrategicamente voltada para um lugar determinado que garante que o clima lá dentro seja o mais agradável, salutar e seguro possível. E que, se relacionarmos as melhores estratégias como as mais bem sucedidas, ou seja, as que garantem qualidade, longevidade – o suficiente para garantir competitividade reprodutiva, ops, sem mais detalhes – resumindo, as reais motivações que nos trouxeram a existência, vamos perceber que nós estamos num nível muito parecido com quase todos os outros seres vivos.

Acontece, claro, que nossas principais ferramentas evolutivas, o nosso cérebro e nossa capacidade de raciocínio terminaram por agregar muita complexidade a essa história. Nossa noção de sucesso – ou melhor, nossas – tem se tornado nosso maior desafio.
O segmento de autoajuda tornou-se um dos mais bem sucedidos do mercado editorial porque responde a uma demanda que atinge um número muito grande de pessoas: a busca pelo sucesso, seja ele profissional ou sentimental. Isso indica também que muitos não estão certos de conseguir descobrir esses caminhos sozinhos.
Não é preciso muita pesquisa para saber que essa busca é provavelmente uma das maiores fontes de nossas angústias modernas.

Isso leva a pensar se nós somos mesmo os seres mais bem sucedidos da natureza. Da mesma forma que desenvolvemos cada vez mais nossa medicina, criamos armas cada vez mais eficazes e, temos que confessar, não andamos usando esses recursos de uma forma muito racional, pensando como espécie. Por exemplo, deixamos milhares, milhões morrerem ou viverem em condições indescritíveis na África possivelmente imaginando que as consequências disso não vão bater à nossa porta um dia. Aliás, já bateram, a AIDS é um exemplo.

Por outro lado, desenvolvemos um senso de compaixão que não encontra paralelo em outras espécies e não, não é monopólio de nenhuma religião, mas talvez a consciência de que nós poderíamos estar passando por aquela situação e que gostaríamos de ser tratados do mesmo jeito. Soa um pouco egoísta? Talvez, mas a noção de que “poderia acontecer comigo” é um forte motivador, ou não? Tudo bem, estou generalizando.


Não sei se fiz muito certo, mas acabei dessacralizando fundo a humanidade para o meu filho (além, é claro, de ter provocado um pouco de sono nele).


Pode ser o caminho para a gente (a humanidade) se olhar com um pouco mais de generosidade e fraternidade: baixar um pouco a crista.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

vocês x nós

O rádio tocava, num daqueles programas de revival da década de 80, a música “Fátima”, do Capital Inicial:
Vocês esperam uma intervenção divina
Mas não sabem que o tempo agora está contra vocês
Vocês se perdem no meio de tanto medo
de não conseguir dinheiro
prá comprar sem se vender
E vocês armam seus esquemas ilusórios
Continuam só fingindo que o mundo ninguém fez
Mas acontece que tudo tem começo
e se começa um dia acaba
Eu tenho pena de vocês.
Mais adiante, “Geração Coca Cola” com o Legião:
Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês nos empurraram
Com os enlatados dos USA de nove às seis
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.



Às vezes ouvimos palavras e expressões que, de tão corriqueiras, começam a passar despercebidas. Enquanto dirigia o carro e ouvia o programa comecei a me perguntar – embora soubesse a resposta – quem são os “vocês” nessas músicas? Ou melhor: quem são os “vocês” hoje? para essa eu ainda não imagino uma resposta definitiva. Mas, vamos lá.

Os períodos continuados de guerras na segunda metade do século passado trouxeram consigo um desencanto em relação ao tipo de sociedade que vínhamos construindo. Esse desencanto se materializou através de movimentos filosóficos como o existencialismo. O Jazz, mais tarde o Rock, foram a expressão musical desse sentimento, que envolvia uma profunda negação dos valores estabelecidos, valores esses irremediavelmente vinculados à geração anterior.
O rock surgiu com a marca da transgressão. Embora nos pareçam um tanto ingênuos hoje, os primeiros rocks causaram uma verdadeira revolução nos corações e mentes dos jovens. Até então, o próprio conceito de “juventude”, como um período do desenvolvimento humano era inexistente. É fácil lembrar nos filmes da época imagens de préadolescentes vestidos de terno e gravata.
Mas essas letras – do Capital e do Legião – me parecem estranhamente datadas. Ou me tornei um “deles”, um manipulador de vontades e espíritos, ou “eles” talvez não existam mais.

Uma das marcas da modernidade é que viramos senhores de nossos destinos. Diferente das sociedades tradicionais, nas quais as preocupações que envolviam a construção de nosso futuro eram quase inexistentes, uma vez que no nascimento esse futuro já vinha mais ou menos esquadrinhado, nas sociedades modernas praticamente todos os caminhos são possíveis. Deixamos, portanto, de ser escravos de nossa origem e passamos a ser de nossas escolhas.
Um dos reflexos dessa “libertação” é que começamos, enfim, a nos enxergar corresponsáveis por “isto tudo que está aí”. Óbvio está que falo de um processo, muita gente ainda julga-se vitimada pelas escolhas alheias, mesmo que, na imensa maioria dos casos, seja por suas próprias.
Somos tentados a enxergar em nossa classe política, nos detentores do poder, os responsáveis pelos entraves de nossos cotidianos, os “vocês” das músicas acima. Bom, nós os colocamos lá, não? Mesmo os “apolíticos”, ou desinteressados pelo tema devem admitir que sua postura é, também, uma opção política.
Longe de ser uma simples liberdade, essa nova fase nos impõe uma relação muito mais complexa com o ambiente que nos cerca, o que pode ser paralisante.
Os “vocês” das letras acima eram os depositários de todas as nossas frustrações e irrealizações. Era confortável pensar assim. Hoje, nós (quarentões, cinquentões e por aí vai) somos os que se vendem, os que controlam, os que programam, ou não? Será que tudo continua igual, só que bem mais sofisticado? Somos escravos de um mundo que se expressa através do consumo de mercadorias, ou era isso que buscávamos o tempo todo?
Lipovetsky defende que nossa liberdade se expressa pela diversidade de escolhas que dispomos, note-se: para consumir.
Diferentes de outras épocas, conquistamos um enorme grau de liberdades. Tão grande que talvez tenham se tornado um peso. Das obrigações estatutárias que as origens impunham ao indivíduo nas sociedades tradicionais emergiu um vazio que ainda estamos aprendendo a preencher.

Só temos hoje uma inescapável obrigação: escolher. Arcar com a responsabilidade dessas escolhas? Bom, aí é outra história.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Gostar de música é complicado.

Logo que saiu a lista de atrações do Planeta Atlântida desse ano, refiz a mim mesmo uma pergunta que já se tornou recorrente há algumas edições do (já) tradicional evento do litoral gaúcho: será que a amplitude de estilos e gêneros contemplados no evento (pop, rock, rap, reggae, axé, pagode, sertanejo - provavelmente esqueço alguns) não provoca algum “desconforto” no público? Ou será que a grande maioria das pessoas gosta mesmo de música, quaisquer que sejam os formatos ou roupagens? Desconfio que essa minha visão generosa pouco tem a ver com a realidade. Infelizmente.
O Planeta, há algum tempo, já deixou de ser um evento “musical” por excelência – visão minha. O que ocorreria, segundo meu ponto de vista, seria um fenômeno parecido com o que carrega centenas de milhares de pessoas aos balneários do Rio Grande do Sul todos os fins-de-semana do verão e que as leva a enfrentar os intermináveis engarrafamentos, filas e multidões nessas pequenas cidades, sempre mal aparelhadas para tamanho acréscimo populacional, o que contribui para momentos paradoxalmente estressantes para essas pessoas, que acorrem ao litoral em busca de descanso.
O que nos motiva nesse caso é a nossa tendência ao gregarismo.
Estamos sempre prontos ao sacrifício em nome de sentirmo-nos incluídos. O Planeta virou um desses eventos onde ir é estar incluído. Mais do que isso: virou – opinião minha, de novo – um tipo de rito de iniciação para adolescentes.
A música, sob essa ótica, é um simples pano de fundo, ou torna-se isso cada vez mais. Logo, é imperativo que ela não atrapalhe. Os artistas vestem a pele – alguns não tem mesmo outra – de meros entertainers. O gênero, nesse cenário, é completamente secundário, irrelevante até.
Mas esse panorama pode ter outros desenrolares: dá para dizer que essa atitude revela que essas pessoas, na verdade, talvez não gostem de música. Será que isso é possível?
Para explicar essa teoria, vou recorrer a uma analogia, ou até mais de uma. Uma pessoa que vai a um restaurante para encontrar os amigos e pretende que a comida e a bebida simplesmente não atrapalhem, mas simplesmente correspondam às suas expectativas. Ela encontra nessas expectativas o parâmetro segundo o qual o restaurante deve elaborar sua comida ou servir a bebida. Nada de errado até que esse fenômeno não se transforme num padrão. Logo, todos os restaurantes, ou a maioria deles, ficarão muito parecidos, buscando adaptar-se às expectativas de seus frequentadores, que, na verdade, prestam muito pouca atenção a eles, a não ser quando eles contrariam as suas expectativas. Chato, não? Nenhum espaço para algum desafio ao paladar.
Um dia alguém disse que o Big Mac foi elaborado visando agradar ao maior número possível de pessoas, o que ele, obviamente, consegue. O preço é um produto meio que despersonalizado. Aquele que você procura quando não está a fim de uma experiência nova ou mesmo de pensar numa alternativa mais criativa para a sua refeição. Ou seja, quando não está com paciência para pensar em comer, só quer encher a barriga, sem surpresas e rápido.
Ora, a música é – ou deveria ser – uma forma de arte, e arte nada tem a ver com conformismo. Os críticos de artes plásticas costumam chamar, pejorativamente, pinturas ou esculturas feitas para compor ambientes de “arte decorativa”. Há algum tempo atrás, o termo para a música “decorativa” era muzak. Sua expressão mais radical pode ser encontrada naquelas rádios para a quarta idade, que tocam apenas antigos sucessos com arranjos adocicados, inofensivos aos ouvidos. Podem também ser ouvidas nos principais elevadores da cidade. Na década de 80, um estilo nasceu nesse rastro, o New Age. Pretensamente autointitulada de música para uma nova era, essas músicas compunham, exclusivamente, um fundo musical para a vida das pessoas, nada para se pensar sobre, mas simplesmente buscavam não atrapalhar e, em alguns casos, ambicionavam acalmar as pessoas. Nessa “nova era”, possivelmente, a música seria algo realmente desimportante. E chata.
As pessoas possuem diferentes tipos de relação com a música. Um sintoma: os principais sites de venda de música pela rede, como o iTunes, registram uma preponderância indiscutível na aquisição de músicas em relação a álbuns.
Nascido na década de 60, com o disco Sgt. Peppers…, dos Beatles, o conceito de álbum elevou o patamar de pretensão da música pop. Não se tratava de um simples amontoado de músicas abrigadas numa mesma peça de vinil, mas surgia a ideia de uma linha narrativa norteando e emprestando um sentido único a cada música em particular. O “todo” não sobreviveria, ou pelo menos não teria o mesmo sentido sem o conhecimento das partes*. E nem todas as partes são hits ou têm potencial para tal, o que exigia um certo “esforço” dos ouvintes, coisa que parece passar longe de nós ao ouvirmos música.
Nós parecemos buscar, cada vez mais, o recheio do sanduiche. Para que perder tempo com o pão, não é? Aliás, o que é mesmo um sanduiche, já que o próprio conceito se esvazia? Não estamos ficando um pouco preguiçosos? Não estamos nos acostumando muito a ser paparicados pelos nossos “fornecedores”? Não estamos ficando muito tempo na frente de programas e sites que nos sugerem do que gostar ou não e estamos nos acostumando com isso?
Acho que não tem jeito. Para gostar de música, mesmo – e descobrir como fazê-lo é um privilégio – , é preciso estabelecer algum compromisso que envolva tirá-la daquele lugar secundário de nossa vida. É uma escolha particular e pode ser ampliada para as mais diversas esferas de nossa existência: literatura, pintura, teatro, cinema, enfim, a vida. Ou essas coisas todas não são, ou buscam, traduzi-la?
*(ver artigo de Eduardo Vicente, disponível em http://www.compos.org.br/pagina.php?menu=8&mmenu=&ordem=1D&grupo1=&grupo2=)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Mercado Fonográfico

Nossa execução em rádios tem sido objeto de frequentes discussões quando nos reunimos (a banda). Percebemos que nosso espaço na programação de algumas vêm diminuindo cada vez mais ano a ano. Às vezes é difícil não imaginar que talvez a nossa música não esteja mais adequada ao tipo de produto que algumas rádios estão entregando aos seus ouvintes, o que, em alguns casos, não deixa de ser lisonjeiro.
No ano passado fizemos uma turnê em Rondônia, em vários campi da UNIR. De início imaginei que tocaríamos para um público completamente desatualizado de nosso repertório mais recente, cuja execução em rádio ficou um pouco mais restrita ao sul e sudeste do país. Me enganei. Os shows foram fantásticos. O público, sempre grande, cantava praticamente todas as músicas junto conosco.
Imediatamente pensei num fenômeno que precisa sempre ser visualizado em todas as suas nuances: a internet.
Alvo de críticas de vários artistas, que consideram ter sido usurpadas as suas criações, distribuidas descontroladamente por toda a rede, a internet também é uma poderosa ferramenta de divulgação. Também tem a qualidade de passar ao largo das negociações que vêm contaminando o ambiente da mídia.
Poucos setores da economia viram alterações tão radicais nas suas relações de consumo como o da música. O mercado fonográfico - aliado à tecnologia que deu origem aos primeiros aparelhos capazes de reproduzir música gravada em cilindros ou discos - de início chegou a ser visto como potencial destruidor do mercado de música ao vivo, uma vez que permitiria às pessoas ouvir música em suas casas. O tempo mostrou que o desenvolvimento da indústria do disco fez, na verdade, crescer, e muito, o mercado de música em ambos os formatos discos e shows. Por outro lado, a capacidade dessa indústria de produzir e disponibilizar novos produtos num mercado crescente e sempre ávido por novidades é limitada. É simplesmente impossível gravar, distribuir e divulgar toda a música produzida no mundo. Logo, as empresas desse mercado começaram a desenvolver critérios de seleção para o que deveriam ou não gravar. Não é difícil imaginar que esses critérios, que foram sendo depurados mais e mais com o passar do tempo, obedeciam a velha relação custo/benefício, ou, por outra, eram gravados aqueles que representassem menor risco à lucratividade das empresas de gravação. Essas empresas, no entanto, tinham que manter-se atentas às flutuações de gosto e peculiaridades do seu público consumidor, o que implicava que essas então já grandes transnacionais tivessem em seu cast artistas locais dos países onde mantinham filiais.
Para manterem-se atentas, as gravadoras começaram a fazer pesquisas de mercado, a investigar em profundidade as motivações de seu público consumidor. Essa atitude atingiu o seu ápice na década de 80, quando as gravadoras começaram a fabricar artistas sob medida para atender às demandas aferidas nas pesquisas. Foi a época das conhecidas boy bands.
A entrada em cena da internet – associada, também ao desenvolvimento e consequente barateamento dos equipamentos de gravação de áudio e vídeo – atingiu o mercado fonográfico na espinha: caíam o monopólio do registro, da distribuição, o lucro dos direitos (que veio a atingir os criadores, também) e, ao mesmo tempo, abria-se uma outra janela: TUDO – mesmo! - poderia vir a ser gravado e ter distribuição global.
Isso leva a pensar numa reconfiguração de poder. Ela já afetou profundamente os negócios das gravadoras. Como essa nova era vai interferir no poder dos meios de comunicação é ainda difícil de dizer, mas acho que esse rio corre na mesma direção, pulverização e segmentação. E mais poder aos consumidores.
Afora as questões em aberto – nem um pouco desimportantes – que envolvem a remuneração dos criadores de música, filmes, produtores, e investidores – é inegável que a internet trouxe o poder para a mão das pessoas. Nenhuma empresa mais vai selecionar, segundo critérios comezinhos, o que as pessoas vão ouvir. Não somos mais reféns de critérios vinculados exclusivamente à fria lógica do mercado. Isso trouxe, traz e trará, a meu ver, outras questões e problemas bem importantes. Assunto para um outro post.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Link

Nesse link, vídeos do show na Zitarrosa, em Montevidéu:
http://cuatronotas.wordpress.com/2008/11/14/nenhum-de-nos-en-montevideo/

Buscas

Não sou um aficcionado pela técnica, na música. O que realmente me move a criar nesse universo é uma busca diferente. Sou verdadeiramente apaixonado pelo formato pop. Esse formato foi, praticamente, depurado por caras como os Beatles: músicas de até três minutos, introdução, bridges e refrão. Os próprios temas encontravam-se dentro de um universo mais ou menos restrito de opções: na maioria das vezes falavam sobre relações amorosas, bem ou mal sucedidas. Com o tempo, esses e outros caras “desvirtuaram” o formato, introduzindo novas temáticas e elementos, o que acabou por contribuir para o seu desenvolvimento e renovação.
Apesar de parecer um pouco restrito, o “formato pop” é, a meu ver, o que proporciona as melhores descobertas. Ao lidar com ele estamos buscando algum tipo de entendimento – ou tentativa de – do que passa pela cabeça dos outros, o que sempre é um bom exercício. E isso é o que me move, é a minha paixão e minha busca na música.
O curioso em nossa trajetória é que as nossas músicas que me parecem melhor traduzir essas buscas frequentemente não fazem muito sucesso, entendido como resultado em vendas e execução de rádio. Talvez a nossa tradução não ande muito boa. Por outro lado, as rádios, em geral, também não andam (é difícil encontrar alguém que “vista a camiseta” de uma rádio hoje em dia, ou não? Há pouco tempo atrás, nem tanto). Quanto às vendas, bom, quase ninguém anda vendendo bem hoje em dia.
O sucesso pode ser visto por diversos prismas, tantos quanto as suas “fórmulas”, mas eu descobri que tenho uma: fazer algo – música, jardinagem, atuação, escrever, dançar, advocacia, medicina, engenharia de sistemas - com uma convicção diferente do ganho monetário, com paixão (não há palavra melhor) e prazer é garantia de sucesso. Disso todo mundo sabe, mas às vezes é bom ler para lembrar.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Alquimias

Todo mundo já ouviu falar a respeito dos alquimistas. Essas pessoas lidavam – e ainda lidam - com diversas substâncias e buscavam, entre outras coisas, a transmutação de metais menos nobres em ouro. Sempre me perguntei se eles conheciam algum princípio de economia, porque o que confere valor ao ouro, além do seu brilho amarelo, é a sua raridade. Quando fosse possível fazer ouro de qualquer metal, ele se converteria em algo banal e sem valor.
Quando você fazia – algum – sucesso com música, sempre vinha a pergunta: qual a “fórmula” do sucesso?
Isso aconteceu bastante conosco entre 1988 e 1990, depois que emplacamos Camila e Astronauta de Mármore em sequência. Costumo dizer que Camila foi a única música que fizemos nesses vinte e poucos anos de carreira que tive a convicção de que seria um “sucesso”. Logo nos primeiros ensaios ela mostrou a que veio. Lembro que não conseguiamos parar de tocá-la, e toda a vez que repetiamos, eu me arrepiava.
Em nossa trajetória, várias de nossas músicas me produziram uma sensação parecida, algumas delas eu até gosto mais que de Camila, mas nenhuma como naquela vez.
Posso dizer que, de alguma forma, fizemos ouro naquele dia, em 1986.
Com Astronauta aconteceu radicalmente o contrário. A música foi gravada no meio de uma sessão conflituosa no estúdio, depois de uma discussão intensa com nosso produtor, Reinaldo Barriga. Gravamos como vínhamos tocando nos shows, em inglês, foi o Reinaldo quem nos convenceu a versioná-la, coisa de que não tínhamos nenhuma convicção àquela altura. Mas – é público e notório – fizemos a versão de Starman, de David Bowie, uma música nem muito conhecida dentro do próprio repertório do autor, que viria a ser conhecida como Astronauta de Mármore.
O que interessa é que não tínhamos nenhuma convicção a respeito de Astronauta vir a ser um sucesso. Nos shows ela era um “buraco” no repertório, a hora de sair para comprar mais cerveja, até que um radialista no Rio – Andrews - resolver apostar nela. Sua visão se demonstrou vencedora: foi uma das músicas mais tocadas no país em 1989, senão a mais tocada. Fizemos ouro de novo, desta vez por um acidente completo.
O que esses dois exemplos provam é que, se existe alguma fórmula secreta para o sucesso, nós a desconhecemos. Mas o caso de Astronauta teve um desenrolar previsível que me remeteu ao caso dos alquimistas: várias versões de músicas estrangeiras começaram a surgir na mesma época, todas tentando reproduzir o fenômeno da nossa. Mas o brilho amarelo já não surpreendia ninguém.
Um dos paradoxos do “sucesso” é que, quanto maior a sua conquista, a expectativa é que ele se mantenha ou cresça, senão vira fracasso.
É como tentar subir numa escada rolante que desce, se diminuir o ritmo ou parar, o destino é o ponto de partida. Não é difícil imaginar o que isso pode fazer com a cabeça de alguém.
O problema é que o sucesso virou um conceito banal, matemático. Ele é medido pela exposição em rádio, TV, jornais e revistas, em números de vendas de discos e DVDs. Enfim, parâmetros que são domináveis pela imensa maioria das pessoas, facilmente mensuráveis. Até aí tudo bem, a exposição pode vir respaldada no interesse público pela trajetória e produção de determinado artista. Só que existem outros fatores envolvidos.
O pessoal de rádio, TV, revistas e jornais não é bobo. Eles enxergam em seus veículos um ativo fundamental para a carreira desses artistas. Não seria justo, então, que os dividendos decorrentes desses ativos fossem divididos? Afinal, vivemos num sistema capitalista: se eu tenho algo que lhe interesse, seria burrice minha não capitalizar essa nossa relação (convém observar que nem sempre há dinheiro envolvido nessas trocas). Só que isso desvirtua um pouco o conceito de sucesso, não? Ele fica, assim, vinculado exclusivamente à capacidade de investimento e negociação de alguns. É, a roda é melhor redonda.
É bem importante notar que falo do caso geral. Existem exceções, mesmo.
Quando começamos e emplacamos Camila e Astronauta, os veículos eram, na média, mais susceptíveis aos interesses de seus receptores, tanto quanto me lembro. Eram tempos diferentes em que podíamos desenvolver a fé de que uma boa música era capaz de alcançar qualquer distância, de romper quaisquer barreiras. Isso ainda acontece, mas, infelizmente, me parece um fenômeno cada vez mais raro.
Engraçado que vejo cada vez menos a pergunta sobre a “fórmula do sucesso”. Nem para artistas de muito sucesso. Acho que ela já virou de conhecimento público, não precisa mais ser feita, e se for feita e respondida, só há dois caminhos: hipocrisia ou constrangimento.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Ideal versus real


Ontem fui conhecer um shopping recém inaugurado aqui em Porto Alegre. É provavelmente o maior de todos daqui. Daqui a algum tempo nós, os portoalegrenses, nos perguntaremos: como era a vida antes dele? Como era possível? Os shoppings existem em todo o mundo, mas acredito que aqui, no Brasil, encontraram seu hábitat natural. Uma possível convergência de fatores contribuiu para o seu sucesso, provavelmente os shoppings correspondam a nossas aspirações de um mundo perfeito: temperatura ideal, iluminação controlada, sem a possibilidade de chuva, piso de granito, banheiros limpos – ok, em alguns casos - , não têm aquela variedade, normalmente desagradável, de odores que ocorre na rua, mas a principal razão apontada pela maioria das pessoas está relacionada com a sensação de segurança que proporcionam, em contraste com a intensa sensação de insegurança da vida nas ruas de nossas grandes cidades. Essa é a contraposição: shopping centers versus “rua”. Mundo ideal versus mundo real. Não poderia entrar em profundas considerações antropológicas e urbanísticas a respeito disso, não tenho respaldo para tanto, mas li há algum tempo uma notícia que sempre me vem à memória quando adentro um desses espaços idealizados para o consumo. A matéria falava a respeito de restrições à consrução desse tipo de empreendimento em Londres. Afora o fato de se tratar de uma grande cidade que busca, de alguma forma, a manutenção de alguma identidade visual, coisa que frequentemente os projetos de shoppings ignorem, o motivo principal exposto na matéria foi o que me chamou mais atenção: Londres queria preservar o comércio de rua – de boa qualidade – por considerar que ele é, em grande parte, responsável pelo charme da cidade. A intensa movimentação de pessoas em ruas como a Oxford e muitas de suas transversais era algo que deveria ser preservado. Esse tipo de questionamento, que nem sempre – ou nunca - passa pelas nossas cabeças, me faz pensar no tipo de cidade que estamos construindo por aqui. Os muros, as grades e também os shoppings segregam a rua e, em nome da segurança, a convertem em um lugar cada vez mais inseguro, uma vez que abandonado. No livro Morte e vida de grandes cidades (Martins Fontes, 2000), Jane Jacobs, que liderou o movimento para evitar que Nova Iorque se tornasse refém dos automóveis diz “É uma coisa que todos já sabem: uma rua movimentada consegue garantir a segurança; uma rua deserta, não”. A autora considera que uma rua com movimento – que, conclusão minha, produza razões para as pessoas circularem nela, como lojas, restaurantes, lancherias e cafés – é uma rua com muitos “olhos”, ou seja, que conta com a vigilância de seus usuários, dependendo menos do policiamento para coibir as ações criminosas. Nossa experiência prova que talvez ruas movimentadas não sejam o suficiente para garantir um ambiente mais seguro, mas, por outro lado, poucos irão discordar que ruas margeadas por grades, muros e as paredes cegas dos shoppings, corredores perfeitos para o trânsito de automóveis, não correspondam a nossa ideia de uma cidade amistosa e boa de morar.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

O Sócio

Quando fizemos o show "Click" no Teatro São Pedro, dias 7, 8 e 9 de novembro últimos, convidamos um músico e compositor uruguaio, chamado Federico Lima. Ele tem um projeto solo, no qual se autointitula "Sócio". É um excelente trabalho, que logo deve ser lançado no Brasil, senão, quando for ao Uruguai, recomendo conhecer. Essa história é uma daqueles dias.
O Federico circulava pelos bastidores do teatro, sempre carregando o violão. Parava, às vezes, em algum canto e então ensaiava as músicas que ia tocar conosco à noite no show. Estava bastante empenhado em fazer tudo certinho: se tinha alguma dúvida interpelava a mim e ao Veco sobre os acordes ou sobre a estrutura das músicas.

Já quase na hora do show, ele passava "você vai lembrar de mim" pela milésima vez e então me perguntou sobre a pronúncia correta de determinada palavra. Nem lembro qual. Disse a ele que não se preocupasse com isso, mesmo porque a pronúncia estava correta, só o que havia era o sotaque espanhol e que nada havia nisso de ruim, pelo contrário.
Quando Federico começou a cantar no show a sua parte na música - bastante conhecida do público - foi, literalmente, ovacionado.
Seu "sotaque", como previ, foi recebido com generosidade pelo público.
Independente da profunda simpatia que a sua figura evoca - ele é de fato uma 'figuraça", privilégio nosso tê-lo conhecido - , o que ocorreu naquele momento, a meu ver, transcendeu a simples escolha adequada da música/artista. Assim também foi quando em nosso show em Montevidéu o Thedy procurou comunicar-se em espanhol, imperfeito, mas empenhado em se fazer entender. Tentativa que também foi calorosamente recebida pelo público.
O que acontece nessas circunstâncias parece demonstrar que, ao contrário do que às vezes vemos na mídia, certas "fronteiras", em muitas instâncias, parecem circunscritas à esfera da geografia, aos eventos futebolísticos e aos delírios nacionalistas de alguns - poucos, mas infelizmente com algum poder.
As pessoas comuns, cuja opinião parece freqüentemente "dispensável", parecem enxergar essas fronteiras como elas realmente são: construções externas e estranhas aos seus reais interesses. Elas, no fundo, querem se encontrar, comunicar-se, compartilhar experiências, jogar bola, cantar, rir e beber juntos.
Pelo menos é isso que fazemos quando viajamos pelos nossos vizinhos.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Como começar uma banda?

Depois de vinte e dois anos de carreira freqüentemente somos tomados como referência. Imaginam-nos autorizados a opinar sobre uma série de assuntos sobre os quais só conhecemos a prática. Costumo desconfiar dessa forma de conhecimento, embora com muita dedicação e algum senso crítico ele talvez possa ser sistematizado e se converter em algo que possa ter alguma utilidade para alguém.
Mas é inevitável que nos perguntem: “Como começar uma banda?”
Durante algum tempo respondíamos de forma esquiva, ou mesmo cínica: “Comecem comprando um afinador eletrônico”, e por aí ia.
Tenho sido, dentro da minha percepção limitada, um pouco mais atento a essa questão. Não é difícil encontrar excelentes músicos em quase qualquer lugar - caras que pegam uma guitarra, baixo, bateria ou teclado e “mandam ver” com uma desenvoltura de fazer inveja a muitos profissionais. Muitas vezes eles se reúnem, fazem uma banda, ensaiam, fazem alguns shows. Eles têm a técnica, têm o equipamento, têm a “imagem”, referências, vontade e tudo o que parece ser necessário para “começar uma banda”. Mas então, nada, ou muito pouco acontece além de uns poucos shows e o divertimento dos ensaios. Logo eles desistem do sonho.
Essas experiências reforçam a impressão de que uma coisa é “começar uma banda”, outra é mantê-la. Talvez as questões fossem mais apropriadamente colocadas se se dispusessem a investigar a profundidade das próprias ambições.
Contardo Calligaris, em uma das crônicas de seu livro “Quinta Coluna”(Publifolha, 2008) discute os sonhos dos adolescentes e sua disposição em transformá-los em realidade. O autor - que é psicólogo e tem vários jovens entre seus clientes - observa que estes vêm sonhando e buscando construir para si futuros cada vez mais comezinhos. Aquelas pretensões que faziam parte do imaginário de quase qualquer jovem – ter uma banda, inclusive - ficaram, cada vez mais, restritas somente à esfera dos sonhos, nunca realizados. Contardo vê nisso – eu também – um prejuízo. Os adolescentes, hoje, parecem pouco inclinados a correr quaisquer riscos em nome de um futuro mais desafiador e menos covencional.
Um dia, conversando com um rapaz, guitarrista, sobre isso e outras coisas, disse a ele uma coisa que pareceu surpreendê-lo: quem sabe, em vez de passar os dias treinando escalas e incrementando o repertório de frases no instrumento, abrir um bom livro? Disse que ele provavelmente não fosse um gênio – sem ofensa, a imensa maioria de nós não é, ou até pode vir a ser, depois de muito trabalho - daqueles que conseguem construir um mundo criativo totalmente auto-referenciado, e que talvez precisasse qualificar a sua opinião sobre o que acontecia em volta dele. Desenvolver uma percepção menos convencional de mundo talvez fosse o que lhe faltasse para produzir algo realmente original.
Não desmereço o apuro técnico, ele também contribui para uma visão menos convencional na hora de abordar o instrumento, mas resumir a busca a isso é – provavelmente – condenar-se a replicar soluções desenvolvidas por caras mais espertos, conectados e… pioneiros.
Lembro de ter lido para a faculdade - arquitetura - um livro que, de várias formas, viria a influenciar minha compreensão de mundo, por conseguinte, minha forma de conviver com a música. Se chama “A História da Arte”, de E.H. Gombrich (LTC, 2000). Não é um livro pequeno, mas sua leitura é fácil e seu ensinamento grandioso.
Esses são, portanto, fatores que considero imprescindíveis para “começar – e manter – uma banda”: os caras geniais são muito poucos, provavelmente você não é um deles – eu sei que não sou - , o que não quer dizer que você não possa fazer coisas muito interessantes e contribuir com o seu toque pessoal e original nessa enorme construção que é o universo da música. Para construir essa sua estrada, um caminho, – que eu acho o mais promissor – um bom começo é desenvolver a curiosidade a respeito de tudo, ou quase tudo, e nunca é demais lembrar: perseverar. Ainda é o único jeito de transformar os sonhos em vida.

Trocas

Quando começamos o nosso site (http://www.nenhumdenos.com.br), logo imaginamos fazer dele um canal de comunicação com as pessoas que, de várias formas, admiram, ou mesmo sintam vontade de criticar o nosso trabalho. Abrimos então a possibilidade de nos remeterem e-mails, que chegam para todos os integrantes da banda.
Poucos acreditam que nós mesmos respondamos as mensagens que nos são enviadas, mas é isso que acontece. Contudo, o que de início nos pareceu uma grande qualidade, com o tempo se revelou um problema. Temos tido pouco tempo e pouca disciplina para manter atualizados os contatos que chegam por e-mail.
As pessoas nos perguntam “porque vocês não fazem um show na minha cidade?”, ou “como consigo encontrar discos, camisetas, bonés da banda?”, ou falam de quanto gostaram de um determinado show ou como gostam da banda (poucas críticas, os que não gostam não perderiam tempo com isso, certo?), ou, os melhores de todos: “a música de vocês me ajudou a atravessar uma fase difícil”, ou “virou o tema de meu relacionamento”.
Durante um tempo me disciplinei – assim como o Thedy, por um bom tempo também - e respondia todas as mensagens que nos eram enviadas, mas acabei sucumbindo a evidência de que seria impossível manter a correspondência atualizada. Uma semana longe do computador implicava em cerca de cem mensagens para responder. Ainda mais porque propus a mim mesmo responder, mesmo que de forma sucinta, cada mensagem sem usar respostas prontas, restringindo a automação à assinatura no final: um abraço, Carlos Stein. Mesmo isso eu mudava, às vezes.
Muito mais do que um “serviço” a favor da banda, logo percebi que o impacto dessas ações produzia em mim muito mais a satisfação pessoal de estar rompendo aquela barreira – que muitas pessoas nessas circunstâncias cultivam, mesmo que neguem – entre o “artista” e o seu público. Foram muitos elogios à minha humildade e desprendimento e, estaria sendo humilde se negasse nisso uma motivação?
Com o tempo esses elogios começaram a passar batido, dando lugar a outros tipos de motivação, uma delas em particular: conhecer um pouco mais desses personagens que ainda nos guardam muito mistério, os admiradores – não gosto da palavra fãs, me soa a convencimento, algum tipo de circunstância imutável que embute a pretensão de uma conquista nossa que implica numa fidelidade eterna – do Nenhum de Nós.
Por outro lado, percebi que a troca não estava sendo muito justa, na medida em que fornecia nas minhas respostas às mensagens mais um pouco da minha persona artística ou as resringia às questões relativas ao “serviço”da banda, enquanto essas pessoas nos contavam histórias muitas vezes tocantes a respeito de suas vidas. Mais de uma vez pude perceber que existia, do outro lado daqueles e-mails, pessoas que tinham alguma curiosidade de ler mais algumas linhas, que revelassem um pouco mais a respeito daqueles caras que, com freqüência e de diversas formas, ocupavam algum espaço em suas vidas. Por isso a idéia desse blog.
Levei muito tempo para criar um blog porque sempre achei muito pretensioso me imaginar palpitando sobre diversos assuntos sobre os quais nem tenho certeza de ter alguma opinião formada. Hoje tenho uma convicção: acho que nunca terei opiniões formadas a respeito de quase nada, mas minha intenção de tornar isso público ainda me soa um pouco pretensioso.
O que me conforta é que é muito fácil para qualquer um que, em algum momento, se revolte com minhas impertinências verbais manifeste essa indignação: me xingue, ou me descarte. Confesso que prefiro a primeira, me permite reconsiderar essas opiniões para uma futura correção de rota, ou, no mínimo, fornece o início de uma boa discussão.