terça-feira, 13 de setembro de 2011

Frio na Barriga

Um repórter comenta num camarim: depois de mais de mil e tantos shows,
aposto que vocês nem sentem mais nenhum friozinho na barriga antes de
tocar.

Costumo responder que, se não tiver friozinho na barriga não tem mais
graça. Juro, não é demagogia. Trabalho para fazer com que na minha
cabeça, cada show, mesmo os não tão legais, sejam únicos e especiais.
Soa batido, eu sei, mas quando olho as pessoas de lá de cima do palco vejo
gente que, desde que acordou pela manhã, ou mesmo antes, dizia para si
mesmo: “é hoje!” não consigo esconder um puta orgulho de protagonizar
esses momentos.

Imagino alguns escolhendo cuidadosamente a roupa, cuidando do cabelo
com um pouco mais de demora, trocando mensagens com os amigos,
combinando o aquecimento.

Há quem fique impassível diante disso. Não é o meu caso. Me recuso a
assumir como um privilégio para o público a simples visão da banda em cima
do palco. Ia ser, para mim, o fim se fosse assim.

Nem sempre está tudo certo comigo quando subo no palco. Como é fácil de
imaginar, temos nossos problemas fora e dentro da banda e é quase
impossível relevar tudo na hora do show. Se trata, então, de transformar
energias de cargas diversas em um momento inesquecível para aqueles que
foram nos assistir.

Hoje temos a felicidade de fazer shows para milhares de pessoas. Nem
sempre foi assim, e eu não esqueço daqueles que fizemos para uma dezena
ou menos. Eles foram inesquecíveis pricipalmente por um motivo: foram
grandes shows. Alguns dos melhores. Fizeram valer a dedicação daqueles
poucos que encararam aquela noite, como nós, como uma noite única. E
tiveram, como sempre, o velho e bom friozinho na barriga que faz tudo valer
a pena.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Às vezes você não tem a sensação de que as pessoas não gostam muito de você?

“Às vezes você não tem a sensação de que as pessoas não gostam muito de
você?”

Ela ouvia em silêncio, mas me olhava fixamente. Estaria prestando atenção?
E o silêncio? Poderia significar que ela concordava com o que havia dito, que
compartilhava, eventualmente, dessa mesma sensação ou que concordava,
por qualquer motivo, com aqueles que não gostavam de mim. Quem poderia
gostar de alguém tão paranóico, ou mesmo egocêntrico, que achava que
alguém perderia um único segundo de sua existência procurando algum
motivo para desgostar de si próprio? Estava chafurdando no buraco,
escavando mais e mais e me afundando mais e mais.

A razão daquele papo é que estava triste e queria, no fundo, ouvir algumas
palavras doces, mesmo que não fossem sinceras. Estava aprendendo de
novo que, cada vez mais, tinha de aprender a sair sozinho dos buracos que
cavava. Era um processo demorado que demandava a escuta repetida de
dois ou três discos, um ou outro filme e uma garrafa de vinho.

Impossível ignorar a sensação de que estava ficando sem interlocutores para
aqueles tipo de conversa. Não tinha mais amigos. Uma triste mas necessária
constatação que tinha um óbvio lado melancólico, mas que deixava tudo mais
claro e trazia embutida a solução para esses momentos: tenho que me virar
sozinho.

Sempre me julguei um bom ouvinte para essas horas. Sou um bom
massagista de egos e não faço isso com muito esforço. Um lado de mim
reforça, constantemente, os motivos para gostar dos outros, embora, claro,
os defeitos alheios me cansem também mas, quem não os têm? O fato é que
me considero um bom amigo nesses momentos, o que não tem contribuído
muito para mantê-los mais próximos de mim.

Tento exercer minha generosidade compilando os meus defeitos como uma
forma de desenvolver mais tolerância para com os defeitos dos outros. Essa
compilação, contudo, foi ficando volumosa. Um livro de umas quatrocentas
páginas que acabou me intimidando na hora de procurar os amigos e foi,
aos poucos, gerando um afastamento que nada teve de voluntário e que
abriu a porta para um pouco de amargor que foi tirando a energia para
reverter essa situação. Fui desenvolvendo, por isso, uma pretensa
independência, uma sensação de que posso me virar sozinho com minhas
angústias existenciais. Tudo isso embalado por um bom tinto e alguma
música condescendente. Mais do que isso: comecei a gostar, doentiamente,
de tudo isso, em alguns momentos.

Alguém disse, um dia, que muita coisa boa foi criada por pessoas dentro
desse estado de espírito. Gostaria de acreditar. Tudo o que produzo quando
estou assim não resiste à luz do sol da manhã seguinte. Não. Um gênio
angustiado pode estar angustiado, mas antes de tudo, é um gênio. Só o que
muda é a paleta de cores que ele usa.

“É, acho que tenho algo parecido, mas não em relação a TODO MUNDO,
sabe? Só em relação à algumas pessoas”.

A pior resposta. Tirou a ação do meu personagem. Será que é tão
complicado para alguns compreender quando você está a fim de ser um
pouco bajulado?

“Não!! Eu tenho essa sensação em relação a TODO MUNDO (usei a mesma
entonação). A TODA E QUALQUER PESSOA QUE CRUZE COMIGO PELA
RUA E TODA E QUALQUER PESSOA COM A QUAL TENHA QUALQUER
TIPO DE CONVERSAÇÃO (já estava começando a soar caricata a minha
imtação dela).”

“Isso inclui a mim?”

“Não incluía até agora há pouco, mas já começo a pensar que escolhi a
pessoa errada para coversar.”

“Sabe qual é o seu problema?”

“Posso fazer uma lista, mas aviso que vai demorar para escrever e acho que
você não vai ter paciência para ler”.

“Aí está o seu problema! Você exagera em tudo!”

Não!!! Me enganei. ESSA era a pior resposta possível! Tudo o que eu
precisava agora era de alguém diminuindo a minha sensação de angústia,
banalizando a coisa. A próxima fala poderia ser: vai a um shopping e compra
alguma coisa que passa essa tristeza.

“Quer dizer que eu me sentir assim é só um EXAGERO da minha parte?” (a
entonação de novo).

“Sim. Quero dizer, é normal as pessoas se sentirem assim de vez em
quando. Não tem nada de errado nisso. Errado é valorizar demais a coisa,
assim como você está fazendo”.

Por alguma razão, o que ela disse fazia algum sentido e por algum motivo,
atrás da minha raiva crescente, consegui perceber aquele sentido e isso me
fez pensar que eu podia, de fato, estar exagerando mesmo. Mais uma página
para o compêndio de meus defeitos: tendo a exagerar nas coisas negativas.
Pode ser uma desculpa para me embriagar, eventualmente...
Pensando assim... parece um pouco patética aquela minha sensação de
alguns minutos atrás.

Ficamos nos olhando por alguns segundos em silêncio e logo desatamos a rir
descontroladamente. Rimos até as lágrimas. Paramos e então rimos mais e
mais. O garçom do bar nos olhou de um jeito divertido. Entre lágrimas falei:

“Traz dois cálices de vinho, por favor?”

sexta-feira, 29 de julho de 2011

O artista que habita o nosso imaginário e as drogas.

Era o começo do século e um clima de descrença na civilização como um
processo que nos tornaria necessariamente melhores emergia como fruto da
primeira guerra.

O surrealismo, movimento artístico nos anos 20, preconizava que a
consciência era uma barreira a ser transposta para se revelar a verdadeira
Arte. A esfera da consciência era, para vários desses artistas, o lugar onde
se incrustrava a “hipocrisia burguesa”, a “semente do mal”, a responsável
pelo horror. Erigia-se, assim imagem do artista como alguém que transcendia
as trivialidades cotidianas e habitava, por assim dizer, um plano alternativo de
consciência que não o comezinho desfrutada pelos outros mortais, mesmo
que para isso dependesse de alguma “química”.

Se explicava, assim, desde a orelha de Van Gogh até o súbito
desaparecimento de Amy Winehouse dias atrás: É um sentimento de
inquietude, de inadequação próprio da sensibilidade do artista. Um desejo de
que fosse tudo diferente que conduz os grandes “mártires da civilização” aos
excessos e à autodestruição. É, no fundo, por nós esse sacrifício. É uma
necessidade. Falso.

Isto é, é claro, uma construção. E uma construção perigosa.
Vamos nos acostumando a ver processos pelos quais Amy passou como
quase uma contingência da profissão.

Alguns babacas chegaram a defender a tese de que as drogas teriam a
capacidade de fazer submergir o consciente, abrindo, assim as portas para a
percepção e criando o ambiente propício para o exercício da criatividade em
toda a sua potência, sem barreiras.

Não, também não é uma “doença social”. Já cansei dessas teses de que
certas posturas são uma certa imposição social. Bobagem. Isso é só uma
forma de distribuir culpas, não de assumi-las.

Houve quem dissesse que se falou muito mais na Amy drogada do que na
Amy artista. Acho que, infelizmente, é impossível dissociar uma da outra.
Aqui vai uma questão de puro gosto pessoal. Amy era uma boa cantora, sem
dúvida, mas acho que muito de sua visibilidade vem de seu comportamento.
Não possuía, a meu ver, o talento de um Hendrix, Joplin ou mesmo Cobain.

Quando um astro qualquer começa a dar exibições públicas de seus
problemas com drogas começa a autorizar a confusão entre talento e
alteração de consciência no artista que reside no imaginário das pessoas. No
caso de Amy, pessoas de todas as idades, algumas bem jovens, viam no
cabelo, na maquiagem e no estilo de vida dela algo no que se inspirar. E isso
é, sim, perigoso, porque as drogas matam. Isso Amy também mostrou.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Respondendo a uma pergunta...

Pergunta recorrente em quase todas as nossas entrevistas: o que acham da
atual cena musical – roqueira – do Brasil?

A pergunta possivelmente busca, mais do que satisfazer a curiosidade do
entrevistador, extrair uma declaração de cunho saudosista, do tipo “No nosso
tempo era diferente. Mesmo o pop tinha outro teor”.

Fácil criticar, dependendo do ângulo que se vê, ainda mais porque o sucesso
implica em visibilidade, massificação e acaba por oferecer, à vista de
tamanha aceitação, a tentação de que busquemos generalizar um certo
“gosto” – ou mau gosto – nacional que parece cada dia um pouco pior.

Parênteses. Provavelmente a maioria do que se produz aqui, como de resto
em qualquer lugar do mundo, deve ser bem interessante. Só que tem menos
visibilidade. Temos que aprender a usar os recursos que o mundo nos
oferece. Fecha parênteses.

Alguns, claro, cedem à tentação e baixam a lenha nos roqueiros coloridos. O
que também não é difícil. Não ignoram, possivelmente, que aqueles não têm
culpa pelo sucesso, embora o “sucesso” pareça estar cada vez mais
vinculado à disposição e dimensão do investimento financeiro, nem todo o
dinheiro do mundo é capaz de fazer uma música tocar se ela não encontrar
alguém que se identifique com ela. A culpa, assim, inexiste. Ainda assim vejo,
no entanto, a manifestação crítica como válida. Mais que válida, necessária.
Ela é parte do jogo. Ainda mais quando se conhece os mecanismos que
frequentemente conduzem e mantêm o sucesso. As boas críticas são quase
como autocríticas. Uma indignação contra a acomodação, contra a aceitação
bovina do que o mercado nos joga na cara quase todas as horas do dia.

Não é errado criticar. Errado seria ser desrespeitoso e estúpido nessa
prática, como de resto, em qualquer manifestação, não é? Ainda assim, até a
estupidez faz parte do jogo. O espaço da crítica é sagrado, embora pareça
um pouco fora de moda, o que é triste de constatar, e não só dentro da
esfera da música.

O Nenhum de Nós foi, e ainda é, muito criticado. Às vezes com bastante
contundência. É sempre chato, mesmo que finjamos que não ou
pretendamos ignorar. Dói sim. Mas não nos paralisa. Doentio é querer viver
na unanimidade positiva. Ou mesmo imaginar que o ato de criticar possa ser
ilegítimo, manifestação evidente, a meu ver, de um nanismo autoritário mal
adormecido e que, de novo, parece despertar por todo o canto.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Uma droga de noite

Abriu os olhos. Ainda era noite. Por um momento não reconheceu onde
estava e até gostou da sensação. Então, logo lembrou.

O quarto, na penumbra, parecia ainda mais triste. Pela janela, a luz da rua
entrava e aos poucos o lugar foi ficando mais visível. Cheirava a sapato velho
e meias usadas. O outro lado da cama estava vazio e a luz do banheiro
brilhava por baixo da porta. Barulho de água.

Não costumava dormir com quem conhecia tão pouco. Nem ao menos tinha
uma boa razão, como uma paixão repentina ou a perspectiva de uma relação
promissora, mas ali estava, se recriminando. Chato.

Mentira. Havia uma razão. Saíra assustada e meio zonza de um bar onde
fora assaltada. Os bandidos tinham até sequestrado um cara. Sem dinheiro,
celular e documentos, resolvera acompanhar o amigo até o apartamento
dele, perto dali, com a desculpa de relaxar. Beberam mais um pouco e uma
coisa levou à outra. Agora só queria cair fora dali.

Enquanto pensava nisso foi colocando a roupa, o sobretudo e os coturnos.
Foi até a porta do banheiro para se despedir. Parou antes de tocar a
maçaneta. Lá dentro, ele cantava uma canção. Caetano, Gil ou Chico. Ou os
três juntos, sabe-se lá. Desistiu. Ele já estava feliz sozinho. Sairia “à
francesa”.

Sem dinheiro, teria que ir para casa caminhando. Seria uma longa
caminhada. Calculou em mais de hora. Um passeio na madrugada fria de
uma cidade que achava que conhecia bem, embora sua fé nisso tenha
diminuído depois do assalto.

Era professora de arte. Ele, de história. Ele era um cara bonito, grande e
despojado. Cabelo descuidado, roupa descuidada, unhas descuidadas e
cultura descuidada. Mas era bonito e isso, mais um pouco de álcool, fora o
suficiente. Mas deu. Ponto final. Por isso pensava nele no pretérito.

Não imaginava o que ele vira nela. Era alta, magra, mas usava cabelos
estranhos, roupas estranhas, unhas estranhas e cultivava um ceticismo tão
extremado que chegava a irritar os mais próximos. Seu mote era: “você acha
mesmo isso?”, com uma nada sutil entonação no “mesmo” que constrangia o
interlocutor a ponto de ele começar a duvidar que pensava mesmo no que
achava que estava pensando.

Ainda morava com sua mãe, aos quase trinta. Às vezes via isso como
preguiça. Em outras, achava razoável, já que as duas eram o que havia
restado da família. A seu favor contava o fato de que a mãe era uma pessoa
jovial e dinâmica, além de muito culta e esperta. Eram mais propriamente
amigas que compartilhavam o apê. Mas havia nisso tudo um tom melancólico
que vinha de algum lugar. Não sabia exatamente de onde. Talvez na
ausência do pai, que um dia qualquer fora embora. Ela era apenas uma
adolescente e então culpou a mãe, a si mesma, ao dinheiro e, finalmente, a
ele. Depois escolheu perdoar, mas nunca esqueceu. A saudade vinha em
ondas a cada dificuldade que enfrentasse, facilitando o choro. Como agora
em que encarava a escuridão da rua, percebendo que não havia saído tão
incólume do assalto quanto supunha. Respirou fundo e seguiu adiante.

Um ou dois quarteirões adiante algo revirou-se em seu estômago. Debruçou-se
sobre uma floreira e vomitou. Logo tudo ficou escuro. Perdeu as forças e
começou a cair. Um braço surgiu a segurou e a colocou sentada na beira da
calçada, com a cabeça entre as pernas. O suor lhe escorria pelo rosto.
Encarou seu benfeitor, ainda sem conseguir falar. Um homem grisalho
sentou-se ao seu lado olhando para ela como se fosse a primeira vez que
visse um ser humano.

“Melhor?”

“Ainda não, mas vou ficar. Ahn, obrigado”.

“Eu que agradeço. Minhas flores andavam meio caídas”.

“São... eram suas? Oh, desculpe”.

“Nada”.

Tirou uma mecha vomitada de cabelo do rosto: “Você é meu anjo da guarda”.

“Fábio.”

“Como?”

“Fábio. O meu nome”.

“Ah. Sim. Desculpe. Ana”.

Esticou a mão suja. Ele olhou. Procurou um pedaço limpo e balançou a mão
dela.

“E então... Ana? Saindo de alguma festa? Se eu posso perguntar. Ou você
sempre alimenta plantas de madrugada?”

Ela riu. E riu mais um pouco e o riso foi ficando descontrolado. Logo ela
estava dobrada na calçada chorando de tanto rir. Fábio a olhava, divertido, o
queixo apoiado nas mãos.

“Desculpe. nào estava rindo de você. Não. Não foi uma festa. Foi uma droga
de noite que começou com um assalto e terminei sem dinheiro, celular e toda
vomitada. E, seu puder perguntar, o que você faz na rua? Não tenho ideia da
hora, mas deve ser bem tarde. Ou cedo. Sei lá”.

“Gosto de caminhar de madrugada. Não durmo muito bem. Isso ajuda”.

Ela olhava para o céu, tentando adivinhar a hora.

“E, Ana... você estava indo para casa? Mora aqui perto?”

“Não. Beeeem longe”.

“Escuta, Ana. Daqui a pouco clareia. Se quiser, vamos ao meu apartamento.
Preparo um café. Você... lava o rosto e sai de dia. É mais seguro”.

“Não. Acho que não”. Respondeu como um reflexo. Um preset que usou
tantas vezes que parecia sair do mesmo conjunto de células do cérebro que
usava para escovar os dentes. Ele não pareceu surpreso e muito pouco
desapontado, como se esperasse essa resposta.

“Ok. Entendo. Olha. Você vai ficar bem?”

Ela não respondeu. Ainda pensava no que havia dito antes, se não havia sido
muito rude, ou ingrata. Ficou um pouco envergonhada: “Quer dizer... não
quero incomodar”.

“Não teria convidado. Mas ok. Eu entendo mesmo”.
“Sim. Acho que estou bem”.

Ele a olhou por alguns instantes. Olhou para o chão. Suspirou. Colocou as
mãos nos joelhos e se levantou.

“Boa noite. Ou bom dia, então, Ana”, falou com um sorriso. E saiu
caminhando pela noite. Um quarteirão. Dois. Logo ela não conseguia mais
vê-lo.

Uma droga de noite, mesmo.

domingo, 17 de abril de 2011

Tenho alma de zagueiro central e nada posso fazer para mudar isso.

Tenho alma de zagueiro central e nada posso fazer para mudar isso.

Dentre as tantas coisas que o futebol ensina – para os que sabem ver – uma delas é
que cada posição exige não só um talento específico, mas uma
personalidade específica para cada jogador.

Não é difícil imaginar que um goleiro deva ser sereno, mesmo quando o time
luta em desespero. Ele deve ser a pedra sobre a qual uma esquadra constroi
a sua jornada. Ele não joga partidas de noventa minutos. Seu destino é fazer
história.

Os atacantes devem ser ousados, letrados na antiga arte do engano, pois
vivem de tentar iludir os zagueiros adversários. Conhecem todas as regras de
cor, com o único intuito de descobrir formas de burlá-las. São o tempero da
personalidade do grupo.

Os meiocampistas devem ostentar sua liderança na postura: peito inflado,
olhar altivo. Sua corrida pelo campo obedece a um compasso diferente dos
companheiros. É o ritmo do pelotão em sua marcha para a vitória. Seu olhar
arguto contém toda a sabedoria e estratégia.

Os laterais são sempre a arma secreta. Olham furtivamente através dos
adversários, buscando um lugar no campo que parece só existir em sua
imaginação, até que se atiram como flechas na direção do alvo. Seu ataque
sempre quer ser fatal.

Já os zagueiros, esses são os verdadeiros soldados em campo. Nesse
grupo, incluo os volantes. São seres sem vaidade. Já entram no jogo
sabedores de que serão ignorados se cumprirem as ordens. Se errarem,
nunca serão esquecidos. Lutam contra um destino do qual não podem
escapar. No jogo com os amigos, eventualmente, começam no ataque. Logo
estão no meio coordenando as jogadas. Sem perceber, escorrem para a
zaga e lá ficam. Pensam: se ninguém que pegar no pesado, pego eu.
Acho que a seleção de 94 foi, talvez, a nossa primeira que tivesse alguma
preocupação com esses personagens. Deu no que deu: um exército
vencedor, mas ainda um exército. Acho também que foi fundamental ter
existido esse time. Descobrimos que precisamos enxergar o jogo também do
meio de campo para trás.

Me descobri com a alma de zagueiro no lugar certo: nos jogos com os
amigos. Aceitei que não tenho a personalidade adequada para as outras
posições. Isso me incomodou durante um tempo, agora não mais.

Descoberta feita, me tornei um admirador dos grandes da posição. Examino
o futebol com outros olhos. A tática e a movimentação dos atletas é agora o
que mais me seduz. A bola é a última de minhas preocupações.

Eu e meu filho assistimos aos jogos do colorado e o time toma um gol logo no
início. Ele me olha com desapontamento e eu – nas vezes em que isso é
verdade, claro – o tranquilizo: fica frio que esse jogo é nosso. Foi só um
acidente. O Inter, então, vira o jogo e eu lhe dou uma piscada (mais um tijolo
na minha imagem de perfeição aos seus olhos. Tenho que me lembrar de
derrubar essa parede…).

A alma de zagueiro, claro, não se limita à prática desportiva. Ela se
esparrama por todas as instâncias da existência, o que é, como quase tudo,
bom e ruim. A pior parte é que cobramos disciplina aos centroavantes,
humildade dos meiocampistas, paciência aos laterais e sangue quente aos
goleiros da vida, o que é um misto de impossibilidade e arrogância.

O lado bom é que, em nossos times, todos sabem que podem contar
conosco, até na hora de lavar as privadas.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Curioso

O que ele fazia naquele bar? ele que nem gostava de bares, ainda mais
sozinho? era a pergunta que se fazia enquanto ajeitava o corpo na cadeira e
esperava a atenção do garçom. É claro que sabia a resposta, mas um
conjunto de improbabilidades fazia a pergunta pertinente, ainda assim.
O lugar era simpático, até. Iluminação suave, azulejos brancos até a metade
da parede, dali para cima uma cor escura ajudava a deixar o ambiente mais
aconchegante. As mesas, de madeira, assim como as cadeiras, davam ao
lugar um ar de antigamente, só traído pela batida repetitiva de um irritante
ritmo eletrônico vindo sabe-se lá de onde e que, por pouco, não inviabilizava
as conversas dos frequentadores.

O chope era mais ou menos, caro e o atendimento, ruim, numa das piores
combinações possíveis para qualquer um que deseje um mínimo de diversão
numa noite qualquer, mas ele tinha suas razões para se submeter a isso: foi
ali que, sete noites atrás, ele a vira.

Estava numa roda de colegas de trabalho. nem todos amigos e nem muito
divertida, mas foi uma circunstância em que se colocou pela constatação de
que, mas que droga!, precisava sair e tentar fugir de uma rotina que pouco a
pouco ia engolindo e mastigando silenciosamente os seus ossos enquanto
afundava no sofá diante da luz fria e solitária da TV, que passava programas
que em nada ajudavam a se sentir um pouco menos desgraçado. Mas foi
naquele lugar que, em uma mesa vizinha, estava ela.

Não era uma beleza óbvia. Muitos até a achariam comum, ou nada demais,
mas por um desses caprichos que o destino ou um bom bioquímico poderiam
explicar, ficou magnetizado pela presença dela. Só conseguia tirar os olhos
dela quando, por algum acidente, seus olhares se cruzavam e a timidez agia.
Ela, claro, percebeu.

Por insegurança, ou qualquer outra razão, resolveu evitar qualquer iniciativa.
Não notou nenhum encorajamento e, embalado pela suave embriaguez do
chope, ia curtindo o clima de flerte, mesmo que unilateral. Nem percebeu
quando o grupo de pessoas em que ela estava já pedia a conta e logo
levantava-se para sair. pena, pensou, mas… tudo bem. Foi quando,
enquanto passava pela mesa em direção à saída, ela botou os olhos nele,
fixos, com um clima divertido. Sentiu-se descoberto, pego de surpresa e
podia jurar que um órgão qualquer de seu aparelho digestivo despregava-se
do corpo e escorria pelos pés. Paralisado, sentiu que todo o bar desaparecia
ao seu redor sem um único som. Virou a cabeça usando algum músculo que
não os seus e mais uma vez encontrou o olhar dela segundos antes da porta
do bar fechar.

Os lapsos de tempo são, como concordaria Einstein, relativos. Algo que você
jura que durou um ou dois segundos pode ter durado, sei lá, cinco ou seis,
não sou cientista. Mas foi impossível dizer o intervalo que houve entre o
momento em que a porta do bar se fechou e ele levantou da cadeira para
tentar algo que nem nem ele sabia o que seria, ante os olhares curiosos de
seus colegas de mesa, mas o fato é que o lapso deve ter sido mais longo do
que estimara. Lá fora, só a noite e um já distante par de luzes vermelhas de
um carro que já ia longe. Levou mais um lapso para entender o que havia
acontecido, e outro para perceber que ainda estava com o copo de chope
ainda na mão. Deu um gole e ficou olhando na direção do carro, que já quase
desaparecia na distância.

Havia saído recentemente de um relacionamento que acabou
melancolicamente com ambos convencidos que a separacão era a melhor
escolha. Nada de cenas ou episódios envolvendo traição e infidelidade. Foi
como um fogo que simplesmente apagou. Não que houvesse sido um dia
uma fogueira vistosa, mas houve bons momentos. Embora pacífica, a
separação deixou aquele inesacapável gosto de derrota, o que o deixou
ainda mais inerte do que normalmente.

Trabalhava numa imobiliária, numa grande sala com mais vinte corretores,
pendurado o tempo todo no telefone intercalando visitas a imóveis com
clientes. Mas algo naquele clima competitivo o incomodava e por isso
contava os minutos para voltar para casa. Depois da separação, nem isso
mais o confortava. Alugara um quarto num apart-hotel nas proximidades do
escritório, na ilusão de que isso deixaria mais tempo livre, que poderia ser
melhor aproveitado que no trânsito voltando para casa. O tempo livre a mais
logo virou mais tempo de ócio na cama do quarto, e a impessoalidade de seu
novo lugar acentuava a sensação de que ia, aos poucos, desaparecendo.
Naquela noite em que viu a garota, teve um súbito lampejo de que não era,
ainda, a hora de desistir. Tinha pouco mais de trinta e oito anos e, apesar do
misto de estupefato e tristeza que os vincos no rosto denunciavam, ainda era
jovem, e merecia, ou mesmo deveria, simplesmente, viver. Por isso estava
naquele bar e naquela noite específica, apostando que ela, como ele, talvez
se abandonasse a algum tipo de rotina ou, por qualquer outra razão,
resolvesse voltar ao mesmo bar naquele mesmo dia da semana seguinte.

À medida que o tempo passava o bar esvaziava, mas alguma convicção o
impedia de sair. Por algum motivo, alimentava a sensação de que algo
extraordinário ia acontecer e não queria perder isso por nada. Quando só
restavam a sua e mais uma mesa ocupada por um casal, num daqueles
momentos em que a atenção se esvai, não percebeu que dois tipos de bonés
enterrados na cabeça entraram no bar e renderam o segurança e o caixa,
balançando armas no ar e gritando que, se olhassem para eles, iam morrer
ali mesmo. Dali em diante foi uma sucessão de gritos, ordens e ameaças que
lhe produziram a sensação de estar vivendo o pesadelo de outra pessoa.

Aquilo não parecia estar acontecendo de verdade e ficar olhando diretamente
para a mesa enquanto esvaziava os bolsos quase pareceu engraçado.

Não foi a bebida que provocou, provavelmente só potencializou, mas
continuou achando engraçado quando um dos assaltantes encostou o cano
da arma na sua nuca e disse “tu vem conosco, e não olha para nós, senão tu
morre aqui mesmo”. Por pouco não riu, e foi, olhando para o chão, seguindo
dois pares de tênis enormes, em direção sabe-se lá de onde pela mesma
calçada que passava quase todo o dia, e que agora, por algum motivo, lhe
parecia estranha.

Entrou, com eles, num caixa automático e, sob o cano da arma, retirou todo o
dinheiro da conta e um pedaço do negativo. Tudo que cabia dentro do limite
que o horário permitia. Entregou o maço e mesmo assim foi levado até um
carro e jogado no banco de trás (“fica abaixado”). Apertou-se no espaço entre
os bancos, com um joelho apoiado no chão do carro e o corpo deitado de
frente no banco, num humilhante contorcionismo resignado. Tudo que podia
ver era a sucessão de flashes da luz da rua sobre os tapetes de borracha do
carro. Ouvia as vozes tensas e entrecortadas dos sequestradores (era esse o
crime agora, não?) mas não conseguia entender nada. Muitas gírias ou talvez
estivesse mais bêbado do que supunha ou, pior, talvez não estivesse nem aí.
Impossível saber o tempo que levou, mas já fazia algum que andavam na
escuridão total. Chegou a pensar se aquela seria a sua última visão: um
tapete de borracha de carro. Chegou a analisar cuidadosamente as formas, a
tipografia da marca e se surpreendeu com a própria frieza. Pensou que podia
ser ele a estar com uma arma na mão. Seria uma pessoa cruel. Parecia não
ter desenvolvido sequer o senso de autopreservação, o que sentiria, então,
pelas outras pessoas? Passou pela cabeça reagir e de alguma forma
dificultar as coisas para os bandidos ou até mesmo abreviar a expectativa. Ia
ser morto de qualquer forma, porque não tentar dar um susto nos caras?
Então o carro parou (“desce!”). Ia ser agora?

Estrada de terra, árvores, cheiro de mato, as únicas luzes eram os farois do
carro, gritos, o brilho da arma, um tiro. Nada, nenhuma dor, só o desconforto
do barulho.

O tiro fora para assustá-lo, mas ele estava anestesiado. Ficou parado
olhando para o chão. Quando olhou para a frente, o carro já ia longe. A
escuridão cresceu.

Mais um lapso de tempo impossível de estimar e, num resquício de
humanidade, começou a bendizer a sorte. Ganhara uma segunda chance, foi
o que surgiu em sua mente. Tentou, por alguns momentos, entender o
significado do que acontecera enquanto um tipo de alegria inédita, ou
ausente pelo menos desde a infância, foi ocupando o seu corpo. Sentiu
vontade de rir, gritar, agradecer, mas o nó que se formava na garganta furou
a fila e então chorou descontroladamente a ponto de cair de joelhos,
prostrado.

A onda de emoção foi dando, aos poucos, lugar às preocupações de ordem
prática: onde estava? como sair dali? quanto tempo para o nascer do sol? e
se aparecesse algum animal selvagem? ou se os bandidos, por qualquer
motivo, resolvessem voltar?

Olhou em volta. Nenhuma pista, nenhuma luz, nada. Só a precária estrada de
terra onde o haviam abandonado atestava a presença da civilização. Escolha
óbvia: retornar pelo caminho por onde havia sido trazido.

Ouvia só o barulho dos passos na areia da estrada e os ruídos dos insetos no
mato. Colocou as mãos nos bolsos. Nada. Não tinha dinheiro, nem celular.
Nenhum cartão, nenhum documento de identidade. Nada que o identificasse
como aquela pessoa que era há algumas horas atrás. Parou. Olhou para
cima. Os olhos já acostumados com a escuridão revelaram um magnífico céu
estrelado. Respirou o ar fresco da noite, feliz. Não mais feliz por ter saído
vivo da desventura, mas feliz. E ponto. Deu meia volta e caminhou, com mais
convicção, na direção oposta. Parece que era para lá que o futuro apontava.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Só um garoto

Agora precisava que você fizesse uma coisa.

Primeiro bota aquela música que você escolhe ouvir quando precisa pensar
na vida. Eu espero.

Deu? Vamos lá, então.

Têm coisas que nos movem e outras nos comovem.

Acabei a pouco de ler “Só Garotos”, uma biografia da Patty Smith. Sempre
pensei nela como uma cantora faca na bota e alternativa. Para ter uma ideia,
o disco de estreia dela, “Horses”, é considerado por muitos o precursor do
Punk. Esguia, andrógina, sempre aparecia nas fotos com um olhar meio
petulante e desafiador, muito legal. Mas o livro mostra muito mais do que
isso, óbvio. Na maior parte do tempo, é até contraditório com essa imagem
que eu tinha. Devia ter pensado melhor, já que ela é também parceira do
Bruce Springsteen em “Because the Night”, que adoro.

A história praticamente começa a partir do encontro dela com Robert
Mapplethorpe, artista plástico em formação, na época, e é cheia de
afetuosidade, romântica e fraternal, e muito comovente, mas teve uma outra
coisa que me bateu nessa leitura e tem a ver com o nascimento de alguma
coisa que poderia definir como personalidade artística.

O amor de ambos nasceu e se consolidou através do amor que ambos
nutriam pela arte e o comovente, para mim, vem daí. Todos os momentos
entre eles pareciam nascer dessa busca que nos move quando temos esse
amor, e que parece tão incompreensível, infelizmente, para alguns que
assistem a tudo de fora.

Os dois contavam as moedas para a próxima refeição e lutavam para dar um
jeito de pagar o aluguel, mas nunca desistiram, apoiados um no outro. Pode
parecer meio piegas, ainda mais se você não colocou aquela música que
pedi no começo. Pior ainda, se você não tem uma música assim, ou se é a
música errada. Então eu entendo.

Eu ainda me sinto tocado por esse tipo de história. Me alimenta uma fé que
tantas vezes já vi meio moribunda mas que descubro, ainda bem, só estava
adormecida.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Histórias?

Me referi, nos posts anteriores, às letras de música como “histórias”.

Não foi por acaso, claro. Sempre me atraiu mais o realismo. Acho mais
consistente, aproxima mais o sentido da vida das pessoas e, no final, gera
obras mais duráveis. Na música, já basta a viagem dos acordes, das notas e
a maluquice dos arranjos.

Mas, como quase tudo, não sou radical nisso. É que acho um exercício FDP
conseguir contar uma história com originalidade e sempre me rendo, de
joelhos, quando diante de uma realmente surpreendente.

Acontece que ando escrevendo uns troços e apostando numa linha que
escolhi. Não estou certo se muito original e se estou conseguindo manter a
proa no rumo, mas estou desconfiando que é esse o segredo, não? NÃO?

Ou sim? Tem alguém ouvindo aí?

Não sou um escritor profissional, mas não é que me cai no colo o
compromisso de escrever um livro. UM LIVRO!

A única coisa que sei é que preciso bolar um jeito de me divertir nessa
jornada. Foi assim com a banda até agora e pretendo me investir nisso assim
também. É só assim que consigo correr maratona, senão paro na primeira
esquina. Até acabei transformando isso numa espécie de ensinamento: se
você tem algo a fazer que vá lhe demandar algum tempo e dedicação,
comece descobrindo um jeito de transformar isso numa espécie de diversão.
Isso mesmo. Vale a pena perder algum tempo nisso. Professoral, vá lá. Esse
sou eu, azar.

Anyway, adiante conto mais a respeito dessa jornada. Quem sabe não pinta
alguma ajuda desse lado aí?

Ei, ACORDA!

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Fazendo música

Existem, provavelmente, infinitas formas de se transformar uma história em
uma música. É precisamente aí que está a graça. Não existe, a princípio,
certo e errado nesse negócio. Mentira. Existe sim.

Quando as possibilidades são infinitas só nos resta uma saída: rigor. Ser
radical, nesse caso, é um imperativo. Quem não se acha capaz nunca se viu
arrumando a posição do garfo que parecia estar “errada” enquanto arrumava
a mesa.

A liberdade proporcionada pela criação artística tem uma dimensão
contraditória. Somos livres, em certo sentido, para enquadrar a nossa
liberdade e, no fim, descobrir as infinitas possibilidades da cabeça de alfinete
que escolhemos como área de trabalho. Mas a escolha, essa é nossa.

Compor música é parecido com desfazer a bagunça. Tirar os excessos que,
de alguma forma, se acumularam em nosso cérebro e, no fim, fazer alguma
história ganhar sentido.

Há quem fique horas num único acorde, tentando explorar todas as
possibilidades melódicas e rítmicas, polindo a proposta a cada passada para
descobrir, no final, que aquilo que descobriu serve mais para uma outra letra
que havia feito há seis meses e só não jogou fora porque errou o lixo.

Como qualquer arrumação, a gente começa com toda a disposição, já
vislumbrando o resultado final, mas é fácil mudar de ideia no meio do
caminho. Faço isso também, às vezes, mas quando começo a tergiversar sei
que é hora de dar um tempo e descansar a cabeça. Conselho: ajuda muito
gravar todas as propostas, mesmo as mais incipientes. Escutar o material no
dia seguinte, com a cabeça fresca, faz toda a diferença.

Ok, mais uma dica prática: e se você estiver contando – e não cantando –
aquela história? Quero dizer, se você REALMENTE estiver dizendo aquilo
que conta a letra, com convicção. A força de se dizer algo em que realmente
se acredita ainda é incomparável.

Comigo sempre é um jogo de idas e vindas. Lanço a música, mexo na letra,
mexo na música, descubro um “gancho” (algo que pode virar a característica
principal da música, que pode ser um riff instrumental ou uma palavra
cantada de um jeito meio marcante) e acabo mexendo em tudo por causa da
descoberta. Gravo. Ouço no outro dia. Acho tudo uma merda. Me sinto
incompetente. Saio. Vou ao cinema. No meio do filme, um lance da trilha me
dá um outro caminho. Fico ansioso esperando o filme terminar para voltar
para casa antes que eu esqueça o que pode ser a grande saída do impasse.
Chego em casa e puuuuuutz. Como é que era mesmo? Agora não parece tão
legal. Largo de mão, fico dois dias só no videogame. Um dia sento e resolvo
o imbróglio, numa tacada. Inexplicavelmente.

Chamam isso de inspiração. Eu já acho que é tudo um processo em que se
fica 24 horas por dia, sete dias por semana absolutamente entronizado com o
trabalho. A solução, de alguma forma, já está dentro de mim. Só preciso tirar
o entulho do caminho para poder enxergar.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Aprender a escrever é aprender a ver (eu acho).

Prá quem se interessa: compor uma música é, como quase tudo mais na
vida, fazer algumas escolhas.

Recebemos, eventualmente, poemas e letras de outras pessoas com a
ordem explícita: usem! Façam uma música com isso! (Já aproveito e aviso:
não é o nosso sistema. Preferimos dar voz às nossas histórias. É um
exercício que nos motiva de verdade). Quanto à qualidade do material
enviado, varia. Têm coisas boas e coisas ruins. As boas nos parecem boas
por várias razões, mas têm uma qualidade recorrente: elas nos surpreendem.
Já as ruins, por eliminação, têm por defeito dizer as mesmas coisas que todo
mundo já disse da mesma forma. O escritor pensa, orgulhoso: isso tem cara
de letra de música. E não está errado. Têm milhares parecidas. Ele já viu
aquilo que escreveu em várias canções, dito exatamente da mesma forma. O
qua não quer dizer que “não funcione”. Qual é o problema, então?

Essa é uma questão pedregosa, mas acho que me faço entender melhor
assim: se você tem alguma ambição, talvez deva buscar um pouco de
originalidade para alcançar seus objetivos. Dá para imaginar que tem
bastante gente tentando do jeito mais convencional, não? A disputa por
aquele caminho é grande. Agora, ser “original” é tudo, menos simples.
Escrever de uma forma original é, antes de tudo, aprender a enxergar o
mundo de uma forma diferente. Dito assim soa como auto-ajuda, e é isso
mesmo. Ajuda um bocado em todos os sentidos criar uma forma mais ou
menos particular ou, no mínimo, menos “pronta” de pensar sobre tudo. É
difícil, mas é o caminho, senão a sua originalidade vai soar gratuita. Envolve,
sim, dar uma polida na cultura geral. Mas repito: vale a pena. Sei que já falei
isso há uns bons posts atrás. Azar. Sou repetitivo mesmo e não tenho
nenhum problema com isso.

Quase todas as letras que recebemos falam sobre relacionamentos
amorosos. Natural, as relações amorosas são momentos que nos colocam
próximos à música. A sensibilidade fica afiada. As músicas parecem ganhar
sentido nessas horas. A maior parte também fala de relacionamentos mal
sucedidos ou problemáticos. Natural também. É quando passamos por eles
que nos socorremos da música. Além disso, quase todos passamos por
essas situações, o que facilita buscar a empatia do ouvinte. Mas
independentemente de você estar ou não passando pela situação que relata (acho
que é mais difícil fazer uma boa letra quando estamos imersos, embora
achemos mais fácil, do mesmo jeito que um bêbado acha que dirige melhor
sob o efeito do álcool enquanto ziguezagueia pela pista), existem formas e
formas de contar uma história.

Fico pensando: tanta gente gosta de animais de estimação, mas quase
ninguém escreve uma história sobre sua relação de amor – porque não? –
com seus bichos.

Era um dia bem normal
Levei Rex para passear…


Tudo bem, não foi original. Rex, então, nem se fala. Mas o tema é novo. Dá
para ser “romântico”

Gosto do jeito que Rex me olha
Enquanto faz o seu xixi…


Explorar a identidade

Rex é um pouco estranho
Assim como eu
Gostamos das mesmas coisas
Mas eu prefiro fazer xixi em casa.


Brincadeiras à parte, tem uma bem conhecida que sempre me vem à cabeça:

Meu coração
Não sei porque
Bate feliz
quando te vê


Singela. Diz tudo que tem para dizer. Não é nada banal e FOI ESCRITA HÁ
QUASE 100 ANOS ATRÁS por Pixinguinha e João de Barro.
Mas uma dica inesquecível me foi dada por um dos meus mestres: você
precisa ter um MOTIVO. Uma razão para escrever. Nem que seja pelo non
sense. Sem isso, fica tudo vazio e sem sentido. Talvez por isso eu seja um
pouco repetitivo. Nossos motivos não são tantos assim, na maioria dos casos
e talvez viver seja, no fundo, ampliar as razões para escrever. Viver histórias
que valham a pena ser contadas, por mais singelas que pareçam. A ideia é
que desenvolvamos uma forma apurada de VER aquilo que muitos banalizam
com frases feitas e fugir de soluções prontas ou, ainda, brincar com elas mas
SEMPRE, sempre falar exatamente o que estamos sentindo. Isso é difícil, eu
sei, mas sempre original.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Complicando

Todo mundo gosta das coisas simples. Ou queria tornar as coisas mais
simples.

Nasce e renasce no nosso imaginário a noção de que simplificar as coisas é,
sempre, uma melhora. Também virou meio consensual que aprender a
enxergar a beleza na simplicidade, bem como comprazer-se com as coisas
simples torna a vida mais fácil. Será?

Já tenho um problema natural com as coisas muito consensuais. Um dos
meus melhores professores um dia me disse que é no mínimo preguiçoso,
quando não desnecessário, dizer o mesmo que todo mundo diz. Concordo. O
senso comum me dá arrepios. Logo, discordo das simplificações por isso.
Mas há outras razões.

No olhar de um artista dos bons, uma paisagem de céu, campo e umas
colinas distantes vira um turbilhão de complexidades. Ele parece desmontar a
suposta harmonia da cena e a recria através de um filtro interior quase nunca
muito harmônico e equilibrado, quando ele é dos bons, repito.

Um amigo queria que nosso novo disco soasse mais... simples. Entendo o
que ele quer dizer. Mas simples, na criação artística, é uma ideia muito
enganosa. A simplicidade que nos seduz nos trabalhos alheios é sempre
fruto de um estupidamente complexo processo de amadurecimento do
próprio artista. Aquilo que vemos é só o reflexo desse processo. A ponta do
iceberg. Difícil e inútil tentar imitar.

Viver, falar, tocar, escrever, transar, abraçar, relaxar, pintar, cantar, beijar, criar filhos, amar
e caminhar de mãos dadas são coisas bem complicadas. Não existem
manuais ou regras que possam garantir que, ao segui-las, seremos bons em
fazer essas coisas. Simplificar? Acho que não.