quarta-feira, 20 de abril de 2011

Uma droga de noite

Abriu os olhos. Ainda era noite. Por um momento não reconheceu onde
estava e até gostou da sensação. Então, logo lembrou.

O quarto, na penumbra, parecia ainda mais triste. Pela janela, a luz da rua
entrava e aos poucos o lugar foi ficando mais visível. Cheirava a sapato velho
e meias usadas. O outro lado da cama estava vazio e a luz do banheiro
brilhava por baixo da porta. Barulho de água.

Não costumava dormir com quem conhecia tão pouco. Nem ao menos tinha
uma boa razão, como uma paixão repentina ou a perspectiva de uma relação
promissora, mas ali estava, se recriminando. Chato.

Mentira. Havia uma razão. Saíra assustada e meio zonza de um bar onde
fora assaltada. Os bandidos tinham até sequestrado um cara. Sem dinheiro,
celular e documentos, resolvera acompanhar o amigo até o apartamento
dele, perto dali, com a desculpa de relaxar. Beberam mais um pouco e uma
coisa levou à outra. Agora só queria cair fora dali.

Enquanto pensava nisso foi colocando a roupa, o sobretudo e os coturnos.
Foi até a porta do banheiro para se despedir. Parou antes de tocar a
maçaneta. Lá dentro, ele cantava uma canção. Caetano, Gil ou Chico. Ou os
três juntos, sabe-se lá. Desistiu. Ele já estava feliz sozinho. Sairia “à
francesa”.

Sem dinheiro, teria que ir para casa caminhando. Seria uma longa
caminhada. Calculou em mais de hora. Um passeio na madrugada fria de
uma cidade que achava que conhecia bem, embora sua fé nisso tenha
diminuído depois do assalto.

Era professora de arte. Ele, de história. Ele era um cara bonito, grande e
despojado. Cabelo descuidado, roupa descuidada, unhas descuidadas e
cultura descuidada. Mas era bonito e isso, mais um pouco de álcool, fora o
suficiente. Mas deu. Ponto final. Por isso pensava nele no pretérito.

Não imaginava o que ele vira nela. Era alta, magra, mas usava cabelos
estranhos, roupas estranhas, unhas estranhas e cultivava um ceticismo tão
extremado que chegava a irritar os mais próximos. Seu mote era: “você acha
mesmo isso?”, com uma nada sutil entonação no “mesmo” que constrangia o
interlocutor a ponto de ele começar a duvidar que pensava mesmo no que
achava que estava pensando.

Ainda morava com sua mãe, aos quase trinta. Às vezes via isso como
preguiça. Em outras, achava razoável, já que as duas eram o que havia
restado da família. A seu favor contava o fato de que a mãe era uma pessoa
jovial e dinâmica, além de muito culta e esperta. Eram mais propriamente
amigas que compartilhavam o apê. Mas havia nisso tudo um tom melancólico
que vinha de algum lugar. Não sabia exatamente de onde. Talvez na
ausência do pai, que um dia qualquer fora embora. Ela era apenas uma
adolescente e então culpou a mãe, a si mesma, ao dinheiro e, finalmente, a
ele. Depois escolheu perdoar, mas nunca esqueceu. A saudade vinha em
ondas a cada dificuldade que enfrentasse, facilitando o choro. Como agora
em que encarava a escuridão da rua, percebendo que não havia saído tão
incólume do assalto quanto supunha. Respirou fundo e seguiu adiante.

Um ou dois quarteirões adiante algo revirou-se em seu estômago. Debruçou-se
sobre uma floreira e vomitou. Logo tudo ficou escuro. Perdeu as forças e
começou a cair. Um braço surgiu a segurou e a colocou sentada na beira da
calçada, com a cabeça entre as pernas. O suor lhe escorria pelo rosto.
Encarou seu benfeitor, ainda sem conseguir falar. Um homem grisalho
sentou-se ao seu lado olhando para ela como se fosse a primeira vez que
visse um ser humano.

“Melhor?”

“Ainda não, mas vou ficar. Ahn, obrigado”.

“Eu que agradeço. Minhas flores andavam meio caídas”.

“São... eram suas? Oh, desculpe”.

“Nada”.

Tirou uma mecha vomitada de cabelo do rosto: “Você é meu anjo da guarda”.

“Fábio.”

“Como?”

“Fábio. O meu nome”.

“Ah. Sim. Desculpe. Ana”.

Esticou a mão suja. Ele olhou. Procurou um pedaço limpo e balançou a mão
dela.

“E então... Ana? Saindo de alguma festa? Se eu posso perguntar. Ou você
sempre alimenta plantas de madrugada?”

Ela riu. E riu mais um pouco e o riso foi ficando descontrolado. Logo ela
estava dobrada na calçada chorando de tanto rir. Fábio a olhava, divertido, o
queixo apoiado nas mãos.

“Desculpe. nào estava rindo de você. Não. Não foi uma festa. Foi uma droga
de noite que começou com um assalto e terminei sem dinheiro, celular e toda
vomitada. E, seu puder perguntar, o que você faz na rua? Não tenho ideia da
hora, mas deve ser bem tarde. Ou cedo. Sei lá”.

“Gosto de caminhar de madrugada. Não durmo muito bem. Isso ajuda”.

Ela olhava para o céu, tentando adivinhar a hora.

“E, Ana... você estava indo para casa? Mora aqui perto?”

“Não. Beeeem longe”.

“Escuta, Ana. Daqui a pouco clareia. Se quiser, vamos ao meu apartamento.
Preparo um café. Você... lava o rosto e sai de dia. É mais seguro”.

“Não. Acho que não”. Respondeu como um reflexo. Um preset que usou
tantas vezes que parecia sair do mesmo conjunto de células do cérebro que
usava para escovar os dentes. Ele não pareceu surpreso e muito pouco
desapontado, como se esperasse essa resposta.

“Ok. Entendo. Olha. Você vai ficar bem?”

Ela não respondeu. Ainda pensava no que havia dito antes, se não havia sido
muito rude, ou ingrata. Ficou um pouco envergonhada: “Quer dizer... não
quero incomodar”.

“Não teria convidado. Mas ok. Eu entendo mesmo”.
“Sim. Acho que estou bem”.

Ele a olhou por alguns instantes. Olhou para o chão. Suspirou. Colocou as
mãos nos joelhos e se levantou.

“Boa noite. Ou bom dia, então, Ana”, falou com um sorriso. E saiu
caminhando pela noite. Um quarteirão. Dois. Logo ela não conseguia mais
vê-lo.

Uma droga de noite, mesmo.

domingo, 17 de abril de 2011

Tenho alma de zagueiro central e nada posso fazer para mudar isso.

Tenho alma de zagueiro central e nada posso fazer para mudar isso.

Dentre as tantas coisas que o futebol ensina – para os que sabem ver – uma delas é
que cada posição exige não só um talento específico, mas uma
personalidade específica para cada jogador.

Não é difícil imaginar que um goleiro deva ser sereno, mesmo quando o time
luta em desespero. Ele deve ser a pedra sobre a qual uma esquadra constroi
a sua jornada. Ele não joga partidas de noventa minutos. Seu destino é fazer
história.

Os atacantes devem ser ousados, letrados na antiga arte do engano, pois
vivem de tentar iludir os zagueiros adversários. Conhecem todas as regras de
cor, com o único intuito de descobrir formas de burlá-las. São o tempero da
personalidade do grupo.

Os meiocampistas devem ostentar sua liderança na postura: peito inflado,
olhar altivo. Sua corrida pelo campo obedece a um compasso diferente dos
companheiros. É o ritmo do pelotão em sua marcha para a vitória. Seu olhar
arguto contém toda a sabedoria e estratégia.

Os laterais são sempre a arma secreta. Olham furtivamente através dos
adversários, buscando um lugar no campo que parece só existir em sua
imaginação, até que se atiram como flechas na direção do alvo. Seu ataque
sempre quer ser fatal.

Já os zagueiros, esses são os verdadeiros soldados em campo. Nesse
grupo, incluo os volantes. São seres sem vaidade. Já entram no jogo
sabedores de que serão ignorados se cumprirem as ordens. Se errarem,
nunca serão esquecidos. Lutam contra um destino do qual não podem
escapar. No jogo com os amigos, eventualmente, começam no ataque. Logo
estão no meio coordenando as jogadas. Sem perceber, escorrem para a
zaga e lá ficam. Pensam: se ninguém que pegar no pesado, pego eu.
Acho que a seleção de 94 foi, talvez, a nossa primeira que tivesse alguma
preocupação com esses personagens. Deu no que deu: um exército
vencedor, mas ainda um exército. Acho também que foi fundamental ter
existido esse time. Descobrimos que precisamos enxergar o jogo também do
meio de campo para trás.

Me descobri com a alma de zagueiro no lugar certo: nos jogos com os
amigos. Aceitei que não tenho a personalidade adequada para as outras
posições. Isso me incomodou durante um tempo, agora não mais.

Descoberta feita, me tornei um admirador dos grandes da posição. Examino
o futebol com outros olhos. A tática e a movimentação dos atletas é agora o
que mais me seduz. A bola é a última de minhas preocupações.

Eu e meu filho assistimos aos jogos do colorado e o time toma um gol logo no
início. Ele me olha com desapontamento e eu – nas vezes em que isso é
verdade, claro – o tranquilizo: fica frio que esse jogo é nosso. Foi só um
acidente. O Inter, então, vira o jogo e eu lhe dou uma piscada (mais um tijolo
na minha imagem de perfeição aos seus olhos. Tenho que me lembrar de
derrubar essa parede…).

A alma de zagueiro, claro, não se limita à prática desportiva. Ela se
esparrama por todas as instâncias da existência, o que é, como quase tudo,
bom e ruim. A pior parte é que cobramos disciplina aos centroavantes,
humildade dos meiocampistas, paciência aos laterais e sangue quente aos
goleiros da vida, o que é um misto de impossibilidade e arrogância.

O lado bom é que, em nossos times, todos sabem que podem contar
conosco, até na hora de lavar as privadas.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Curioso

O que ele fazia naquele bar? ele que nem gostava de bares, ainda mais
sozinho? era a pergunta que se fazia enquanto ajeitava o corpo na cadeira e
esperava a atenção do garçom. É claro que sabia a resposta, mas um
conjunto de improbabilidades fazia a pergunta pertinente, ainda assim.
O lugar era simpático, até. Iluminação suave, azulejos brancos até a metade
da parede, dali para cima uma cor escura ajudava a deixar o ambiente mais
aconchegante. As mesas, de madeira, assim como as cadeiras, davam ao
lugar um ar de antigamente, só traído pela batida repetitiva de um irritante
ritmo eletrônico vindo sabe-se lá de onde e que, por pouco, não inviabilizava
as conversas dos frequentadores.

O chope era mais ou menos, caro e o atendimento, ruim, numa das piores
combinações possíveis para qualquer um que deseje um mínimo de diversão
numa noite qualquer, mas ele tinha suas razões para se submeter a isso: foi
ali que, sete noites atrás, ele a vira.

Estava numa roda de colegas de trabalho. nem todos amigos e nem muito
divertida, mas foi uma circunstância em que se colocou pela constatação de
que, mas que droga!, precisava sair e tentar fugir de uma rotina que pouco a
pouco ia engolindo e mastigando silenciosamente os seus ossos enquanto
afundava no sofá diante da luz fria e solitária da TV, que passava programas
que em nada ajudavam a se sentir um pouco menos desgraçado. Mas foi
naquele lugar que, em uma mesa vizinha, estava ela.

Não era uma beleza óbvia. Muitos até a achariam comum, ou nada demais,
mas por um desses caprichos que o destino ou um bom bioquímico poderiam
explicar, ficou magnetizado pela presença dela. Só conseguia tirar os olhos
dela quando, por algum acidente, seus olhares se cruzavam e a timidez agia.
Ela, claro, percebeu.

Por insegurança, ou qualquer outra razão, resolveu evitar qualquer iniciativa.
Não notou nenhum encorajamento e, embalado pela suave embriaguez do
chope, ia curtindo o clima de flerte, mesmo que unilateral. Nem percebeu
quando o grupo de pessoas em que ela estava já pedia a conta e logo
levantava-se para sair. pena, pensou, mas… tudo bem. Foi quando,
enquanto passava pela mesa em direção à saída, ela botou os olhos nele,
fixos, com um clima divertido. Sentiu-se descoberto, pego de surpresa e
podia jurar que um órgão qualquer de seu aparelho digestivo despregava-se
do corpo e escorria pelos pés. Paralisado, sentiu que todo o bar desaparecia
ao seu redor sem um único som. Virou a cabeça usando algum músculo que
não os seus e mais uma vez encontrou o olhar dela segundos antes da porta
do bar fechar.

Os lapsos de tempo são, como concordaria Einstein, relativos. Algo que você
jura que durou um ou dois segundos pode ter durado, sei lá, cinco ou seis,
não sou cientista. Mas foi impossível dizer o intervalo que houve entre o
momento em que a porta do bar se fechou e ele levantou da cadeira para
tentar algo que nem nem ele sabia o que seria, ante os olhares curiosos de
seus colegas de mesa, mas o fato é que o lapso deve ter sido mais longo do
que estimara. Lá fora, só a noite e um já distante par de luzes vermelhas de
um carro que já ia longe. Levou mais um lapso para entender o que havia
acontecido, e outro para perceber que ainda estava com o copo de chope
ainda na mão. Deu um gole e ficou olhando na direção do carro, que já quase
desaparecia na distância.

Havia saído recentemente de um relacionamento que acabou
melancolicamente com ambos convencidos que a separacão era a melhor
escolha. Nada de cenas ou episódios envolvendo traição e infidelidade. Foi
como um fogo que simplesmente apagou. Não que houvesse sido um dia
uma fogueira vistosa, mas houve bons momentos. Embora pacífica, a
separação deixou aquele inesacapável gosto de derrota, o que o deixou
ainda mais inerte do que normalmente.

Trabalhava numa imobiliária, numa grande sala com mais vinte corretores,
pendurado o tempo todo no telefone intercalando visitas a imóveis com
clientes. Mas algo naquele clima competitivo o incomodava e por isso
contava os minutos para voltar para casa. Depois da separação, nem isso
mais o confortava. Alugara um quarto num apart-hotel nas proximidades do
escritório, na ilusão de que isso deixaria mais tempo livre, que poderia ser
melhor aproveitado que no trânsito voltando para casa. O tempo livre a mais
logo virou mais tempo de ócio na cama do quarto, e a impessoalidade de seu
novo lugar acentuava a sensação de que ia, aos poucos, desaparecendo.
Naquela noite em que viu a garota, teve um súbito lampejo de que não era,
ainda, a hora de desistir. Tinha pouco mais de trinta e oito anos e, apesar do
misto de estupefato e tristeza que os vincos no rosto denunciavam, ainda era
jovem, e merecia, ou mesmo deveria, simplesmente, viver. Por isso estava
naquele bar e naquela noite específica, apostando que ela, como ele, talvez
se abandonasse a algum tipo de rotina ou, por qualquer outra razão,
resolvesse voltar ao mesmo bar naquele mesmo dia da semana seguinte.

À medida que o tempo passava o bar esvaziava, mas alguma convicção o
impedia de sair. Por algum motivo, alimentava a sensação de que algo
extraordinário ia acontecer e não queria perder isso por nada. Quando só
restavam a sua e mais uma mesa ocupada por um casal, num daqueles
momentos em que a atenção se esvai, não percebeu que dois tipos de bonés
enterrados na cabeça entraram no bar e renderam o segurança e o caixa,
balançando armas no ar e gritando que, se olhassem para eles, iam morrer
ali mesmo. Dali em diante foi uma sucessão de gritos, ordens e ameaças que
lhe produziram a sensação de estar vivendo o pesadelo de outra pessoa.

Aquilo não parecia estar acontecendo de verdade e ficar olhando diretamente
para a mesa enquanto esvaziava os bolsos quase pareceu engraçado.

Não foi a bebida que provocou, provavelmente só potencializou, mas
continuou achando engraçado quando um dos assaltantes encostou o cano
da arma na sua nuca e disse “tu vem conosco, e não olha para nós, senão tu
morre aqui mesmo”. Por pouco não riu, e foi, olhando para o chão, seguindo
dois pares de tênis enormes, em direção sabe-se lá de onde pela mesma
calçada que passava quase todo o dia, e que agora, por algum motivo, lhe
parecia estranha.

Entrou, com eles, num caixa automático e, sob o cano da arma, retirou todo o
dinheiro da conta e um pedaço do negativo. Tudo que cabia dentro do limite
que o horário permitia. Entregou o maço e mesmo assim foi levado até um
carro e jogado no banco de trás (“fica abaixado”). Apertou-se no espaço entre
os bancos, com um joelho apoiado no chão do carro e o corpo deitado de
frente no banco, num humilhante contorcionismo resignado. Tudo que podia
ver era a sucessão de flashes da luz da rua sobre os tapetes de borracha do
carro. Ouvia as vozes tensas e entrecortadas dos sequestradores (era esse o
crime agora, não?) mas não conseguia entender nada. Muitas gírias ou talvez
estivesse mais bêbado do que supunha ou, pior, talvez não estivesse nem aí.
Impossível saber o tempo que levou, mas já fazia algum que andavam na
escuridão total. Chegou a pensar se aquela seria a sua última visão: um
tapete de borracha de carro. Chegou a analisar cuidadosamente as formas, a
tipografia da marca e se surpreendeu com a própria frieza. Pensou que podia
ser ele a estar com uma arma na mão. Seria uma pessoa cruel. Parecia não
ter desenvolvido sequer o senso de autopreservação, o que sentiria, então,
pelas outras pessoas? Passou pela cabeça reagir e de alguma forma
dificultar as coisas para os bandidos ou até mesmo abreviar a expectativa. Ia
ser morto de qualquer forma, porque não tentar dar um susto nos caras?
Então o carro parou (“desce!”). Ia ser agora?

Estrada de terra, árvores, cheiro de mato, as únicas luzes eram os farois do
carro, gritos, o brilho da arma, um tiro. Nada, nenhuma dor, só o desconforto
do barulho.

O tiro fora para assustá-lo, mas ele estava anestesiado. Ficou parado
olhando para o chão. Quando olhou para a frente, o carro já ia longe. A
escuridão cresceu.

Mais um lapso de tempo impossível de estimar e, num resquício de
humanidade, começou a bendizer a sorte. Ganhara uma segunda chance, foi
o que surgiu em sua mente. Tentou, por alguns momentos, entender o
significado do que acontecera enquanto um tipo de alegria inédita, ou
ausente pelo menos desde a infância, foi ocupando o seu corpo. Sentiu
vontade de rir, gritar, agradecer, mas o nó que se formava na garganta furou
a fila e então chorou descontroladamente a ponto de cair de joelhos,
prostrado.

A onda de emoção foi dando, aos poucos, lugar às preocupações de ordem
prática: onde estava? como sair dali? quanto tempo para o nascer do sol? e
se aparecesse algum animal selvagem? ou se os bandidos, por qualquer
motivo, resolvessem voltar?

Olhou em volta. Nenhuma pista, nenhuma luz, nada. Só a precária estrada de
terra onde o haviam abandonado atestava a presença da civilização. Escolha
óbvia: retornar pelo caminho por onde havia sido trazido.

Ouvia só o barulho dos passos na areia da estrada e os ruídos dos insetos no
mato. Colocou as mãos nos bolsos. Nada. Não tinha dinheiro, nem celular.
Nenhum cartão, nenhum documento de identidade. Nada que o identificasse
como aquela pessoa que era há algumas horas atrás. Parou. Olhou para
cima. Os olhos já acostumados com a escuridão revelaram um magnífico céu
estrelado. Respirou o ar fresco da noite, feliz. Não mais feliz por ter saído
vivo da desventura, mas feliz. E ponto. Deu meia volta e caminhou, com mais
convicção, na direção oposta. Parece que era para lá que o futuro apontava.