sexta-feira, 17 de abril de 2009

s.h.

super heróis não riem
caminho curvado: último dinossauro na terra. pior, com a consciência da extinção iminente. será que somos tão diferentes? gosto de imaginar que sim. olho o mundo através de um tubo inclinado para baixo: sapatos, tênis, sandálias, pontas de cigarro, chiclés pretos esmagados, uma pedra, duas, asfalto, cocô de cachorro. é tudo o que eu vejo. é o mais próximo da invulnerabilidade. tudo assume uma cor estranha, mas nova. eu atá ia rir de algum revés, se tivesse energia, porque tudo fica um pouco risível. quando tudo fica sem sentido vem a visão de raios x. só vejo o osso. não. vejo o que eu penso que é o osso. tem um prazer estranho nisso, na invisibilidade. nem os detectores eletrônicos de movimento me captam. não existe mais o medo, nenhum medo. de nada. revólver, faca, estilete, palavras, altura, fogo, afogamento, ser enterrado vivo, queimado numa pilha de pneus. tudo muito engraçado. se tivesse energia riria. mas não. super heróis não riem.

sábado, 11 de abril de 2009

Sonos

Durmo melhor entre o som das conversas.

Existe uma espécie de abrigo cálido que se conforma em torno das vozes de familiares e conhecidos. Tombar entre esses sons produz o melhor dos sonos.

Aliás, só me lembro de um melhor: o sono do carro quando somos pequenos, e a sensação de ser carregado, imóvel – fingindo-se desmaiado – até a cama. Até as funções de higiene como escovar os dentes, lavar o rosto e as mãos, tudo dispensável. Em primeiro lugar, o repouso do corpo. O sono da alma.

O súbito silêncio nas conversas é que me desperta. Os gritos, as interjeições e discordâncias não. Tudo conspira para – como aquele cobertor displicentemente jogado sobre os meus joelhos num dia mais frio – me envolver no desejo de não estar em nenhum outro lugar.
Às vezes estava na rede, na casa da praia. Uma brisa leve esfriava o ar que entrava pelo meu nariz, misturando cheiro de maresia, churrasco, caipirinha, café e sobremesa.

Até hoje fico em dúvida se dormia ou fingia. Alguns momentos são tão perfeitos que dá vontade de parar de respirar para ver se se eternizam. Ainda bem que não: sempre vem alguém e gentilmente nos toca o ombro e diz: café com bolo?

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Ítens de gênero

Carros são brinquedos masculinos. São nossa forma de expressão mais acabada, quando não a única.

Os fabricantes de veículos, sensíveis aos novos tempos, inventam uma série de ítens – é o nome técnico – para seduzir as mulheres: espelhos iluminados, porta-batom e sei lá o que mais. Alguns funcionam, mas eles parecem não ter percebido que o mais feminino de todos os ítens já está no carro. Aliás, sempre esteve, desde que o primeiro foi inventado: a buzina.

Basta olhar. Você ouve uma buzina no meio do trânsito e batata: é mulher.

Sei, estou generalizando um pouco, mas só um pouco, porque, quer dizer, homens e mulheres têm sons diferentes de buzina.
A buzinada masculina é uma palavra, melhor, um palavrão. É lacônica, abusada. A feminina é um texto, um discurso, uma história de vida.
O som da buzina masculina urra: SUMAM! A das mulheres conjectura: saiam da minha frente, tenho que buscar as crianças na escola, passar no mercado, preparar a janta, esperar o maridão ou: estou atrasada para aquela aula daquele professor gatinho e, se chegar tarde, não vou conseguir sentar perto das gurias e vou ter que falar do meu fim-de-semana maravilhoso em voz alta e tem detalhes que são meio…indiscretos e o professor gatinho pode ficar incomodado, aliás, ele fica ainda mais gatinho quando está incomodado.

Tenho infinitos motivos para invejar as mulheres – elas, de nós, só têm um: nossa capacidade de urinar em pé – mas quando vejo uma dirigindo, falando ao celular – sei, sei que é proibido, but – e buzinando para um motoboy imprudente que que se materializou no caminho, fico com sentimentos controversos: simpatia que crava um sorriso idiota na minha cara e inveja da forma como elas se ancoram na realidade através de todos os sentidos e poros.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Divagarim

Recomendações:
Blog da amiga Clarisse, gaúcha, atualmente radicada em Fortaleza.
Deem uma olhada, duvido que alguém não goste.

http://divagarim.zip.net/

O Garimpeiro

Toda a mesa dos amigos no bar se curvava na direção do corpo perfeito que adentrava. Ele nem percebia. Seu foco era uma menina de óculos na mesa do canto. Ela conversava com os amigos e o hipnotizava: boca, olhos, cabelo, voz, o jeito delicado que comia o sanduiche aberto: três mordidas. A fatia de tomate às vezes pendia do queixo. É preciso, no mínimo, elegância para lidar com isso. Ela tinha.
Não era feia, de modo algum. Só não era óbvia, e as obviedades lhe cansavam.

Gostava de garimpar mulheres. Não era um catador.

Calças muito justas, decotes pronunciados, barrigas à mostra, umbigos com piercings, cabelos tingidos e alisados, tudo isso soava como uma série de lugares-comuns. O discurso era pobre.
Nada tinha a ver também com beleza interior. Outro discurso pobre. Tinha a ver com beleza mesmo, mas uma beleza que pedisse uma construção compartilhada, um diálogo, não o monólogo das gostosonas.

Tinha desenvolvido o olhar preciso dos apreciadores das artes difíceis.

Como quase todo mundo, havia entrado e saído de diversos relacionamentos. A sucessão de experiências aguçou mais esse seu olhar.
Uma vez namorou uma levemente estrábica – a vesguinha, diziam os amigos. Costumava dizer que aquele jeito de olhar funcionava como um ímã: vivia se postando no lugar onde os olhos apontavam: a centímetros do rosto dela, e os olhos ainda pareciam pedir mais. Um vício.
Outra, vitimada pela praticidade, estava sempre de rabo-de-cavalo. E ainda por cima usava óculos!
Outra ainda era obrigada a usar um uniforme que nada tinha de sensual. Teve que resistir para não apelar que ela o usasse sempre, mesmo nos dias de folga.

Não conseguia, por outro lado, disfarçar o desapontamento quando seus afetos, movidos pelo desejo de encarnar outros personagens, se produziam. Muitas vezes até para impressioná-lo: estou bonita? Diziam. Ele suspirava, contrariado: linda.

Era quase sempre o começo do fim.