sábado, 23 de maio de 2009

Estações

Tenho um amigo que me disse algo que me fez mudar um jeito de pensar.

Quem tem ou já teve um jeito de pensar deve saber como é difícil mudar.

Conversávamos sobre um inverno tardio ou sobre um verão apressado, isso não lembro, mas o que ele falou foi: não tenho preferência de estação, gosto de verões muito quentes e invernos congelantes. Comprei na hora.

Desde então venho desenvolvendo intolerância com meias estações. As radicalidades me seduzem mais.

Meias estações não são estações. Os trens param nas estações, só param no meio por um mau motivo.

Hoje quase todos os esforços parecem voltados a evitar os contrastes, os extremos. Fogem de pontos de vista radicais por medo de ficar sozinhos. Alimentam um desejo doentio pelo comum, pelo razoável. Arredondam os cantos da vida.

Desisti das concessões: taco pimenta na comida. Cachaça, tomo de gole. Jogo alegremente a água do banho fora com o bebê junto. Roupas são pretas ou brancas, cinza é um desbotamento do caráter, ou pior, uma mancha. Nem vou falar dos beges. A própria palavra fala por si mesma.

Busco o desequilíbrio. É dali que vem o movimento. É o desconforto que me move, na direção dos próximos desconfortos.

Declarei guerra sincera e devotada ao senso comum. Uma implicância impertinente contra o mais ou menos. Compro brigas, vendo contradições e empresto dúvidas.

Não sobrará muro!

terça-feira, 12 de maio de 2009

Exercícios

Eu tô tentando. Eu tô tentando...
Essa turma maravilhosa que dispende um pouco do seu precioso tempo de quando em quando para ler os meus textos e, melhor, comentar,(eu leio todos, todinhos, viu?) deve ter notado uma diferença nos temas e mais ainda, na forma. Aviso: não estou esquizofrênico. Ainda.
Como quase tudo na vida tem explicação, – fora o que não se explica – isso tem: estou fazendo uma oficina de texto com um maluco (em vários sentidos) chamado Carpinejar e resolvi usar esse espaço prá lá de democrático para me exercitar. Boto então uma malha – conceitual – bem apertada e uma bandana na cabeça para estancar o suor e vou tentando.
Não abandono nenhuma de minhas pretensões – e bota pretensão nisso! – e muito menos a maior de todas: ser um cara disciplinado e manter esse blog razoavelmente em dia. Como um bom pai, sempre que coloco um texto novo, abro e reabro o blog para ver o filho novo. Com o tempo, como todo o pai, começo a enxergar os seus defeitos. Mais algum tempo – ainda como todo o pai – SÓ CONSIGO ENXERGAR OS DEFEITOS. Mas tudo bem, aprender a amar os defeitos daqueles que amamos é que é a coisa. Embora ainda esteja aprendendo, da forma mais dura, que é um pouco necessário nos desligarmos daquilo que produzimos – de novo, mais ou menos como acontece com os filhos – para produzir coisas novas e, quiçá, melhores (isso é diferente do que acontece com os filhos).
Só entrei para dizer isso: obrigado. Tem sido mais que legal por causa de vocês, viu?

segunda-feira, 4 de maio de 2009

100%

Ela coloca o pé na faixa de segurança. Eu paro. Ela agradece com um sorriso. Alguém buzina no carro de trás. Eu olho, na expectativa de algum conhecido. Acho que não é. É um Chevette. Verde. Meu pai teve um Chevette verde igual àquele. Cada vez que ele trocava de carro era sagrado: nos pegava em casa para dar uma volta no carro novo, uma espécie de ritual familiar de posse, e com o Chevette verde não foi diferente. Mas aquele Chevette é diferente, tem os vidros pretos: impossível enxergar o motorista. Um braço se agita pela janela, hostil. É um homem. Ou uma mulher peluda. A argumentação do braço não deixa dúvidas: ele não está feliz com minha parada na faixa de segurança. Saímos juntos de nosso impasse e torno a parar, agora no sinal vermelho. Ele pára atrás de mim, de novo. Não buzina, mas o braço ainda mostra claramente a contrariedade. O sinal abre, ele acelera bem além do necessário para fazer um Chevette verde se mover. Andamos uns duzentos metros e paramos no sinal seguinte. Ele está em outra pista, mas não ao meu lado. Percebo que ele me enxerga através do meu espelho porque quando olho, ele gesticula. Começo a fingir não olhar, movo apenas os olhos, e não a cabeça, na direção do braço. Ele tem boa visão, não consigo pegá-lo desprevenido, por mais rápido que olhe ele reage. Esse é o problema com os espelhos: não entendem a nossa curiosidade. Expõem e revelam com a mesma intensidade. Insensíveis objetos inanimados! No próximo sinal ele consegue, depois de outra acelerada esfumaçada, parar ao meu lado. Ele se vira para mim e agora o braço pungente ganha um rosto, não muito bonito nem muito feliz, mas tão pungente quanto o braço. Antes que comece a gritar, subo o meu vidro: não levei fé na qualidade do xingamento, resolvo guardar a imagem do braço. Isso parece tê-lo enfurecido mais: agora os dois braços se movem numa coreografia complexa. Fico curioso e começo a baixar o vidro. O sinal abre e o Chevette verde se vai. O braço faz um último gesto, como se jogasse algo para trás. Minha existência, provavelmente. Quando a fumaça se dissipa eu vejo o adesivo, imenso, no vidro preto traseiro do Chevette verde: 100% JESUS.