sábado, 14 de março de 2009

vinil e cd

Recebi do Thedy uma entrevista de um jornalista a quem respeito muito na revista Bravo on line, o Arthur Dapieve. Leiam em: http://bravonline.abril.com.br/conteudo/musica/qual-futuro-musica-424977.shtml
Concordo com tudo o que ele falou, mas tenho dúvidas em relação a uma questão em particular: a sobrevivência do CD como suporte, mesmo resguardado num nicho específico.

Embora seja indiscutível a qualidade do produto musical associada aos suportes CD e DVD em relação aos arquivos MP3, me parece que parte da mística associada ao vinil - que teria viabilizado aos “apreciadores” do formato a criação de um nicho específico já meio que consolidado no mercado de música – está mais associada ao ritual necessário para a audição dos discos.

Naqueles idos escutar música requeria a atenção dedicada e presencial. Era necessário estar no mesmo ambiente, ou bastante próximo, para conseguir ouvir o que estava tocando, já que não havia a possibilidade de portabilidade enquanto da execução da música (não tente fazer isso com o tocadiscos do seu pai, please). Além disso, precisávamos trocar o lado do disco ao final da última faixa. Ficávamos, com frequência, enxugando o conteúdo dos álbuns, o que conferia a parte gráfica destes um valor especial e, no limite, acabava por ensejar um tipo de relação com a música que em muito – não dá para negar – se perdeu.

Uma prova dessa relação é que existe um mercado de apreciadores de vinil, mas o cassete – a não ser que esteja mal informado – não goza de toda essa regalia. E tinha portabilidade via walkmans.

Uma das principais características associadas à digitalização das coisas é a perda da relação direta com o objeto que lhe deu origem. Estabelece-se uma relação mediada por códigos binários. Aquela nota específica da guitarra que produzia um sulco mais profundo na superfície do vinil – e dava, sim para discriminar as músicas “lentas” das “rápidas” a partir do vislumbre dessa superfície – produz, num arquivo digital uma sequência de zeros e uns em nada diferente daquelas que o computador usa normalmente para identificar um tipo de fonte ou se se trata de uma letra maiúscula ou minúscula ou se é aquela foto que você tirou da sua priminha torturando o seu cãozinho.

Difícil imaginar que possa surgir muita intimidade nessa relação, né?

Tudo bem, poderíamos estar falando de conteúdo, mas não é o caso aqui. O papo é sobre suportes e a capacidade deles de firmar algum tipo de conjunção afetiva com o ouvinte.

A portabilidade se consolidou como o principal valor no momento: poucos trocariam armazenar 10 mil músicas – embora não imagine quem tem a necessidade de carregar tudo isso – por umas mil com uma definição superior – o que já é uma quantidade monstruosa. E ainda tem muita coisa que interfere na qualidade da audição: é só dar uma olhada naqueles fones amarelados (eca!) que você usa todo o dia para ir para a aula ouvindo o seu tocador de MP3. Qualidade impõe isso, investimento. De dinheiro, espaço e tempo. Não é preciso trazer a opinião de nenhum especialista para sustentar que esses parecem ser artigos raros e um luxo para a maioria de nós.

É uma pena, mas talvez o prazer de ouvir uma música com o rigor e dedicação que ela merece – e algumas merecem, e não são poucas - seja mais uma das vítimas dessa nossa noção moderna de urgência que impregna o nosso cotidiano, que nos faz acreditar que é perda de tempo deixar um tempo para ler, comer decentemente, pensar, amar e conversar sobre essas coisas.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Etiqueta Urbana

Quando viajo para o centro do país não consigo evitar de carregar comigo uma sensação de insegurança em muito potencializada pelos meios de comunicação. Sei, no fundo, que é um pouco exagerada, pois não é muito diferente da que vivencio quase todo dia aqui em Porto Alegre.

Há algum tempo me chamou a atenção a argumentação de um conhecido, carioca, sobre um episódio envolvendo um turista – mais um – assaltado e morto. Não me lembro exatamente do caso, mas episódios similares aconteceram e continuam acontecendo todos os dias pela cidade, o que infelizmente torna esse caso uma ocorrência cotidiana que talvez dispense o conhecimento dos detalhes.
Ele dizia que os turistas se colocam em condição de risco. Traduzindo: carregavam objetos de valor à vista de qualquer um, caminhavam sem a devida atenção pelas ruas e frequentavam os lugares errados nos horários inadequados. Viviam, assim, se expondo a riscos, comportando-se como tolos (manés é a palavra), e destino de mané todo mundo sabe qual é, não é?
Bom, os malandros (contrário de manés) não cometem esses erros.

Pouco tempo depois, uma música dos Paralamas do Sucesso, Calibre, pergunta:
Por que caminhos você vai e volta
Aonde você nunca vai
Em que esquinas você nunca para
A que horas você nunca sai
Há quanto tempo você sente medo
Quantos amigos você já perdeu
Entrincheirado, vivendo em segredo
E ainda diz que não é problema seu

Após mais uma babárie ocorrida na cidade, organiza-se uma passeata pela paz. Pessoas com camisetas brancas carregam bandeiras brancas e cartazes com a foto de mais um inocente chacinado.
Numa declaração, o jornalista Pedro Bial – ele próprio vítima de um episódio de violência – afirma que não vê sentido nesse tipo de movimento, não se trata de pedir paz, mas encarar o fato de que o Rio vive uma situação de guerra e agir como tal.

Não é preciso muito para concluir que a violência já nos vitimou a todos, de muitas formas.
Assumimos que existem lugares em que “não podemos” ou “não devemos” ir com naturalidade. Que existem objetos que devemos esconder aos olhos do público.
Fiquei surpreso em constatar também que um grande número de pessoas próximas pensam assim.

A violência mapeou as metrópoles. Designou os horários e os comportamentos “adequados”, inaugurou uma nova etiqueta: como se comportar, o que vestir, aonde ir e como ir para não ser assaltado ou assassinado.
Vamos, aos poucos, incorporando essa nova etiqueta. Saudamos os antenados e mal nos compadecemos dos infelizes manés que, ignorando os seus ditames, se “dão mal” pelas ruas da cidade.

A culpa acaba sendo deles.

Paradoxalmente, gostamos de mostrar nossa indignação a cada novo caso de violência. Culpamos nossos governantes, mas será que, dentro de nós, essa batalha já não foi perdida?
Não poderia, claro, defender que nos expuséssemos irracionalmente. Muito diferente é assumir como naturais essas restrições. Nossas cidades são desenhadas pelo limite das grades dos prédios. Entrincheiramo-nos em condomínios murados que simulam internamente nosso ideal de cidade sem muros. Compramos em shoppings, devidamente isolados da rua.

Incorporamos os muros.

Difícil dizer os reflexos disso no nosso cotidiano futuro.