sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

vocês x nós

O rádio tocava, num daqueles programas de revival da década de 80, a música “Fátima”, do Capital Inicial:
Vocês esperam uma intervenção divina
Mas não sabem que o tempo agora está contra vocês
Vocês se perdem no meio de tanto medo
de não conseguir dinheiro
prá comprar sem se vender
E vocês armam seus esquemas ilusórios
Continuam só fingindo que o mundo ninguém fez
Mas acontece que tudo tem começo
e se começa um dia acaba
Eu tenho pena de vocês.
Mais adiante, “Geração Coca Cola” com o Legião:
Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês nos empurraram
Com os enlatados dos USA de nove às seis
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.



Às vezes ouvimos palavras e expressões que, de tão corriqueiras, começam a passar despercebidas. Enquanto dirigia o carro e ouvia o programa comecei a me perguntar – embora soubesse a resposta – quem são os “vocês” nessas músicas? Ou melhor: quem são os “vocês” hoje? para essa eu ainda não imagino uma resposta definitiva. Mas, vamos lá.

Os períodos continuados de guerras na segunda metade do século passado trouxeram consigo um desencanto em relação ao tipo de sociedade que vínhamos construindo. Esse desencanto se materializou através de movimentos filosóficos como o existencialismo. O Jazz, mais tarde o Rock, foram a expressão musical desse sentimento, que envolvia uma profunda negação dos valores estabelecidos, valores esses irremediavelmente vinculados à geração anterior.
O rock surgiu com a marca da transgressão. Embora nos pareçam um tanto ingênuos hoje, os primeiros rocks causaram uma verdadeira revolução nos corações e mentes dos jovens. Até então, o próprio conceito de “juventude”, como um período do desenvolvimento humano era inexistente. É fácil lembrar nos filmes da época imagens de préadolescentes vestidos de terno e gravata.
Mas essas letras – do Capital e do Legião – me parecem estranhamente datadas. Ou me tornei um “deles”, um manipulador de vontades e espíritos, ou “eles” talvez não existam mais.

Uma das marcas da modernidade é que viramos senhores de nossos destinos. Diferente das sociedades tradicionais, nas quais as preocupações que envolviam a construção de nosso futuro eram quase inexistentes, uma vez que no nascimento esse futuro já vinha mais ou menos esquadrinhado, nas sociedades modernas praticamente todos os caminhos são possíveis. Deixamos, portanto, de ser escravos de nossa origem e passamos a ser de nossas escolhas.
Um dos reflexos dessa “libertação” é que começamos, enfim, a nos enxergar corresponsáveis por “isto tudo que está aí”. Óbvio está que falo de um processo, muita gente ainda julga-se vitimada pelas escolhas alheias, mesmo que, na imensa maioria dos casos, seja por suas próprias.
Somos tentados a enxergar em nossa classe política, nos detentores do poder, os responsáveis pelos entraves de nossos cotidianos, os “vocês” das músicas acima. Bom, nós os colocamos lá, não? Mesmo os “apolíticos”, ou desinteressados pelo tema devem admitir que sua postura é, também, uma opção política.
Longe de ser uma simples liberdade, essa nova fase nos impõe uma relação muito mais complexa com o ambiente que nos cerca, o que pode ser paralisante.
Os “vocês” das letras acima eram os depositários de todas as nossas frustrações e irrealizações. Era confortável pensar assim. Hoje, nós (quarentões, cinquentões e por aí vai) somos os que se vendem, os que controlam, os que programam, ou não? Será que tudo continua igual, só que bem mais sofisticado? Somos escravos de um mundo que se expressa através do consumo de mercadorias, ou era isso que buscávamos o tempo todo?
Lipovetsky defende que nossa liberdade se expressa pela diversidade de escolhas que dispomos, note-se: para consumir.
Diferentes de outras épocas, conquistamos um enorme grau de liberdades. Tão grande que talvez tenham se tornado um peso. Das obrigações estatutárias que as origens impunham ao indivíduo nas sociedades tradicionais emergiu um vazio que ainda estamos aprendendo a preencher.

Só temos hoje uma inescapável obrigação: escolher. Arcar com a responsabilidade dessas escolhas? Bom, aí é outra história.

6 comentários:

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  3. Pois é meu caro!
    Tua redundância com as palavras são perfeitas!
    E ainda mais com as aplicações das novas regras ortográficas!
    Parabéns.
    O texto está belíssimo.
    Iris

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  4. É dificil encontrar os eu's e você's da vida, embora, como é de conhecimento de todos, o individualismo imperando entre as pessoas.
    Infelizmente.
    E como dito, as nossas escolhas, boas ou más, nos impõe e tornarmo-nos inérteis.

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  5. Com regras ou sem elas, escreves muito bem, pelo conteúdo... claro.Não sabia desses belos dotes...O vocês de ontem, somos os nós de hoje. Eu consigo me colocar claramente em muitas dessas músicas dos anos 80, por outras razões e circunstancias, claro. Ainda somos o futuro da nação.E a escolha talvez não seja ainda tao obrigatória. Sempre tem os "em cima do muro" por dúvida ou medo. Convenhamos também, talvez o Humberto esteja certo... "É inútil ter certeza". Temos liberdade... simplesmente pra não termos que ter certeza. =DDepois voume te linkar no meu blog, então. BeijoMari/Floripa

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  6. E meu post ficou todo desconfigurado, sem os paragrafos... droga.

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