segunda-feira, 4 de maio de 2009

100%

Ela coloca o pé na faixa de segurança. Eu paro. Ela agradece com um sorriso. Alguém buzina no carro de trás. Eu olho, na expectativa de algum conhecido. Acho que não é. É um Chevette. Verde. Meu pai teve um Chevette verde igual àquele. Cada vez que ele trocava de carro era sagrado: nos pegava em casa para dar uma volta no carro novo, uma espécie de ritual familiar de posse, e com o Chevette verde não foi diferente. Mas aquele Chevette é diferente, tem os vidros pretos: impossível enxergar o motorista. Um braço se agita pela janela, hostil. É um homem. Ou uma mulher peluda. A argumentação do braço não deixa dúvidas: ele não está feliz com minha parada na faixa de segurança. Saímos juntos de nosso impasse e torno a parar, agora no sinal vermelho. Ele pára atrás de mim, de novo. Não buzina, mas o braço ainda mostra claramente a contrariedade. O sinal abre, ele acelera bem além do necessário para fazer um Chevette verde se mover. Andamos uns duzentos metros e paramos no sinal seguinte. Ele está em outra pista, mas não ao meu lado. Percebo que ele me enxerga através do meu espelho porque quando olho, ele gesticula. Começo a fingir não olhar, movo apenas os olhos, e não a cabeça, na direção do braço. Ele tem boa visão, não consigo pegá-lo desprevenido, por mais rápido que olhe ele reage. Esse é o problema com os espelhos: não entendem a nossa curiosidade. Expõem e revelam com a mesma intensidade. Insensíveis objetos inanimados! No próximo sinal ele consegue, depois de outra acelerada esfumaçada, parar ao meu lado. Ele se vira para mim e agora o braço pungente ganha um rosto, não muito bonito nem muito feliz, mas tão pungente quanto o braço. Antes que comece a gritar, subo o meu vidro: não levei fé na qualidade do xingamento, resolvo guardar a imagem do braço. Isso parece tê-lo enfurecido mais: agora os dois braços se movem numa coreografia complexa. Fico curioso e começo a baixar o vidro. O sinal abre e o Chevette verde se vai. O braço faz um último gesto, como se jogasse algo para trás. Minha existência, provavelmente. Quando a fumaça se dissipa eu vejo o adesivo, imenso, no vidro preto traseiro do Chevette verde: 100% JESUS.

6 comentários:

  1. "Um braço se agita pela janela, hostil. É um homem. Ou uma mulher peluda."Hahaha...muito bom.8P
    Como já disseram:Esse blog ainda vai virar um livro...hehe.
    E "apareça" mais vezes...8)

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  2. Pode ser visto como falsa demagogia. Mas é, para mim, um problema muito maior das religiões, que parecem não considerar que o ser humano tem seus passos norteados por diversos sentimentos, alguns nada perfeitos.

    Nada como ter olhos para esses sinais do dia-dia.

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  3. Este não é o primeiro, nem o último...
    Pessoas que gostam de "se enganar".
    E pra que mesmo ele usa aquele adesivo?

    "Todos os dias que virão, o tolo trará flores..."

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  4. Como é que pode?! Quando uma pessoa vai tirar a habilitação, os funcionários do CFC deveriam fazer um teste de paciência, além do psicotécnico e de visão (que já são feitos). É por isso que acontecem tantos acidentes... Pessoas nervosas, parece que estão sempre contra o tempo, querem chegar ao seu destino o mais breve possível, sem se importar com o fato de que podem acabar com várias vidas ao agir assim.

    Não sou um exemplo de pessoa paciente, mas pelo menos não fico xingando e fazendo gestos quando algum motorista me atrapalha...

    Ah, e sobre o adesivo, o motorista deve ter colado no carro porque o achou bonito, né! Só pode...

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